Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na gramática tradicional, ainda ensinada aos alunos de 8.º e 9.º anos, torna-se difícil encontrar uma explicação cabal para a definição de verbos transitivos indiretos. Nalgumas publicações é dito que são aqueles que são seguidos por complemento indireto, noutras afirma-se que são os que são seguidos de complemento indireto ou outro complemento iniciado por preposição, e noutras, ainda, diz-se que são os que são seguidos de complemento indireto ou complemento circunstancial.

Gostaria que, se possível, me ajudassem nas seguintes dúvidas:

Nas frases «Ele dormiu bem», «Ele dormiu no sofá» e «Entreguei o livro na biblioteca», que tipo de verbo temos? Estará correto dizer que nas duas primeiras é um verbo transitivo indireto e, na última, um verbo transitivo direto e indireto, pois têm à frente um complemento circunstancial?

Resposta:

De acordo com a terminologia mais antiga, conforme a Nomenclatura Gramatical Portuguesa a fixou em 1967, os verbos eram apenas descritos de acordo com duas categorias, a de verbo transitivo e a de verbo intransitivo. O termo «verbo transitivo indireto» parece de uso mais recente, visto fazer parte do Dicionário Terminológico, que o define assim: «v[erbo] principal que selecciona um sujeito e um complemento indirecto ou oblíquo.»

De qualquer forma, nos exemplos apresentados na pergunta não ocorre nenhum verbo transitivo indireto. Em «Ele dormiu bem» e «Ele dormiu no sofá», o verbo dormir é intransitivo, enquanto «bem» e «no sofá» são ambos complementos circunstanciais na terminologia mais antiga ou modificadores na nova terminologia. Quanto a «Entreguei o livro na biblioteca», ocorre na frase um verbo transitivo direto, entregar, que tem por complemento direto o grupo nominal «o livro», e por modificador, o grupo preposicional «na biblioteca».

Pergunta:

Tenho dificuldade em entender o critério de derivação prefixal, composição e recomposição. Um pseudoprefixo pode ser prefixo ou radical, dependendo da palavra que integra?

Por exemplo: é lícito dizer que em retroceder tenho uma derivação prefixal (porque se manteve a noção de movimento/advérbio), mas em retrovisor ocorre recomposição (e aí ele é pseudoprefixo)? Ou que autodidata seria um processo normal de composição, mas em autoestrada há recomposição, já que ocorreu mudança de sentido em relação ao radical grego?

Vocês me recomendariam alguma leitura a este respeito?

Resposta:

Não é só a consulente que tem dificuldade em distinguir. De facto, não existe um critério que defina com segurança a diferença entre radical, por um lado, e prefixo ou pseudoprefixo, por outro.

Margarita Correia e Lúcia San Payo de Lemos, em Inovação Lexical em Português (Lisboa, Edições Colibri/Associação de Professores de Português, 2005, págs. 30-32; mantenho a ortografia original) explicam que «[o prefixo] corresponde frequentemente a antigas preposições e advérbios latinos e gregos» e «tem um conteúdo semântico menos gramatical (e concomitantemente mais facilmente perceptível) do que o sufixo, levando por vezes a situações em que é difícil distinguir entre prefixos e elementos de composição». As autoras deixam ainda a seguinte advertência:

«[...] [O]s prefixos avaliativos colocam alguns problemas de classificação, dado que, na paráfrase composicional dos derivados, estes prefixos equivalem frequentemente a adjectivos e, nesses casos, apresentam um significado que pode considerar-se de natureza lexical, pelo que podem ser considerados elementos de composição. Atente-se na paráfrase composicional de megaconcerto [...] que é "grande concerto". As dificuldades em distinguir os dois processos de construção de palavras [explicam] que, em diversas gramáticas tradicionais, a prefixação fosse incluída nos processos composicionais.»

Também Alina Villalva, em Estruturas Morfológicas (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para Ciência e Tecnologia, 1998, pág. 358), comenta o mesmo problema:

«Não é [...] surpreendente que, na tradição gramatical portuguesa, a prefixação tenha por vezes sido considerada como um tipo de composição [...]. A hipótese que coloco é a de que a...

Pergunta:

No exercício abaixo, retirado de um documento brasileiro, a resposta correta seria a A. No entanto, a resposta D parece-me igualmente correta, porque, como descrito no vosso site: quando o verbo tem complemento preposicional que integra uma frase infinitiva, é possível a construção com lhe.

A dúvida está na forma «escolhem-nas», que quando termina em ditongo nasal assume-se nas, contudo neste caso eu diria «escolhem as suas vítimas.», ou seja, «escolhem-as».

«Entregar todos os seus pertences.» «Os delinquentes escolhem suas vítimas

Substituindo-se os termos grifados pelos pronomes correspondentes, a forma correta será:

A) entregá-los – escolhem-nas

B) entregá-los – escolhem elas

C) entregar-lhes – escolhem-as

D) entrega-lhes – escolhem-nas

E) entregá-los – escolhê-las

Resposta:

A opção certa é mesmo a A, tendo em conta que se pressupõem as sequências «Entregar todos os seus pertences.» e «Os delinquentes escolhem suas vítimas». Se, na sequência que é pressuposta, o verbo entregar ocorresse com um complemento como «aos herdeiros», aí, sim, o pronome pessoal a usar seria lhes.

Convém observar que a consulente não indica com clareza a resposta em que se apoia para defender a opção D. Além disso, note-se que o verbo entregar seleciona um complemento direto e um complemento indireto, não podendo os pronomes pessoais que o realizem permutar sem alteração de significado: «ele prometeu entregar todos os seus pertences ao herdeiros» > «ele prometeu entregá-los aos herdeiros», «ele prometeu entregar-lhes todos os seus pertences», «ele prometeu entregar-lhos». Não se trata, portanto, de um verbo como mandar (verbo causativo), que aceita tanto o pronome o como o pronome lhe, em referência à pessoa a quem se manda fazer algum coisa: «mandou-os fazer o exercício» = «mandou-lhes fazer o exercício» (ver Textos Relacionados).

Quanto à forma «escolhem-as», lamento, mas está incorreta. O correto é mesmo escolhem-nas, com o pronome as passando a nas porque se segue a forma verbal terminada em ditongo nasal (ver Textos Relacionados).

Pergunta:

Levando em conta as explicações dadas por Helena Figueira:

«Ao contrário da ortografia, que é regulada por textos legais (ver o texto do Acordo Ortográfico), não há critérios rigorosos de correcção linguística no que diz respeito à pronúncia, e, na maioria dos casos em que os falantes têm dúvidas quanto à pronúncia das palavras, não se trata de erros, mas de variações de pronúncia (...)»

É legítimo isso aplicar-se às chamadas consoantes mudas? O novo acordo preconiza Egito como ortográfica e foneticamente correcto; porém, eu e várias pessoas que conheço (zona centro-norte) pronunciamos esse país com o p. Trata-se então de uma variação de pronúncia regional aceitável? E, sendo aceitável, devemos continuar a escrever Egipto, ou a nossa ortografia tem de seguir a fonética culta, de Lisboa (Egito)?

Não havendo critérios rigorosos, significa isso que não podemos dizer a alguém, em rigor, que pronuncie escrita como [escripta] que está incorrecto?

Resposta:

Trata-se de um caso de dupla grafia, que decorre da aceitação de duas pronúncias para a mesma palavra: Egito e Egipto.

Quanto à pergunta final da consulente, "escripta" é uma forma incorreta, porque, embora possa ser uma variante individual, não é legitimada pelo comportamento linguístico de nenhum grupo, seja ele definido pela geografia (dialeto), pelos contrastes sociais (socioleto) ou pelas diferentes modalidades de expressão (registos, oralidade, escrita). Porque não há registo de "escripta" como forma que ocorra sistematicamente na expressão de um grupo de indivíduos, o mais que se pode dizer é que "escripta" é uma variante idioletal, se esta forma ocorrer de forma consistente no discurso de um indivíduo. Se nem isso acontecer, considerar-se-á que, do ponto de vista descritivo, se trata de uma forma fortuita, resultante de um lapso ou de um ato gratuito. Na perspetiva da norma, "escripta" será sem dúvida um erro, porque está excluída do elenco de formas que as comunidades de falantes de língua portuguesa definem, explícita ou implicitamente, como legítimas.

Pergunta:

Sei que já se falou sobre isto, mas infelizmente não consigo encontrar as páginas referentes a isto.

Tenho lido que com as novas tecnologias se pode foneticamente diferenciar as seguintes palavras. Mas no entanto ainda não se encontram nas gramáticas portuguesas. Antigamente foi difícil aceitar que tínhamos 2 semivogais, que se encontram em pai e pau, hoje aceitamos isso e lê-se nas gramáticas; mais tarde foi possível reconhecer mais 2 semivogais mas eram nasais, encontramo-las em mãe e pão, essas 2 ainda não se encontram em todas as gramáticas.

Agora são as seguintes palavras, o /L/ em final de sílaba como:

ál em cálcio vs. al em calcário

él em Bélgica vs. el em saudável

íl em funil vs. il em fértil

ól em golpe vs. ol em Moldávia

úl ...

Resposta:

1. Não se deve às novas tecnologias a identificação de semivogais (orais ou nasais), nem se pode dizer com segurança que, em tempos, era difícil aceitar a existência de semivogais em português. Basta referir que o termo semivogal foi usado pelo filólogo português J. Leite de Vasconcelos, nas suas Lições de Filologia (2.ª edição, Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional, 1926, pág. 30). Mesmo em gramáticas escolares publicadas em Portugal, encontra-se este termo, por exemplo, no Compêndio de Gramática Portuguesa de J. M. Nunes de Figueiredo e A. Gomes Ferreira (Porto, Porto Editora, 1976, pág. 156).

2. Quanto ao [ɫ], que ocorre em final de sílaba, trata-se de uma consoante que há muito está descrita por vários investigadores e gramáticos com diferentes termos, em função da perspetiva teórica adotada. No entanto, parece-me que uma classificação acessível ao chamado grande público é a proposta por Celso Cunha e Lindley Cintra, que, na Nova Gramática da Língua Portuguesa (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, pág. 45-47), apresentam essa consoante como uma consoante lateral alveolar velarizada, que soa de modo diferente do [l] que ocorre em começo de sílaba (isto é, em começo ou meio de palavra):

«[...] Na pronúncia normal do português europeu, a consoante l, quando final de sílaba, é velarizada; a sua articulação aproxima-se,pelo recuo da língua, à de um [u] ou [w]. Na transcrição fonética, é costume distinguir este l do l inicial de sílaba, representando-se o último por [l] e a consoante velarizada por [ł]: lado [´laδu], alto [´ałtu], mal [´mał].»1

Em relação ao português brasileiro, os mesmos autores (ibidem) ass...