Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de colocar a seguinte questão, referente à utilização do verbo dever, na forma reflexa e à função sintática que se lhe segue. Vejamos a seguinte frase:

«A modernização deve-se à aplicação de técnicas sofisticadas.»

Nesta situação, o verbo seleciona a preposição a, não podendo ser substituído pelo pronome lhe: *«A modernização deve-se-lhe...» Assim, o verbo será seguido de complemento oblíquo?

Se a frase fosse «Esta recompensa deve-se ao empenho dos alunos», teríamos uma situação similar?

Resposta:

O verbo dever, associado ao pronome se reflexo (dever-se), é sinónimo de «ser devido a», por sua vez, o mesmo que «ser por causa de » (cf. Mário Vilela, Dicionário do Português Básico, Porto, Edições ASA, 1991, s. v. dever). Neste caso, o verbo seleciona um complemento oblíquo, e não um complemento direto, como bem observa a consulente. Observem-se as seguintes frases:

1. «A modernização deve-se à aplicação de técnicas sofisticadas.»

2. *«A modernização deve-se-lhe.»

3. «A modernização deve-se a isso.»

Em 2, a substituição de «à aplicação de técnicas sofisticadas» por lhe é incompatível com dever-se, «ser devido», donde se conclui que «à aplicação de técnicas sofisticadas» não é um complemento indireto. Por seu lado, a 3 mostra que o grupo preposicional «à aplicação...» só pode ser substituído por outro grupo preposicional contendo o pronome isso; trata-se, portanto, de um complemento preposicional.

Pergunta:

Na expressão «Tanto pior para ele», pior é o comparativo do adjetivo mau, ou do advérbio mal?

Resposta:

Do adjetivo mau, considerando que «tanto pior para alguém» é uma forma elíptica de dizer «isso é tanto pior para ele», frase que pressupõe «isso é mau para ele».

Pergunta:

Será correcto utilizar este neologismo, envelhescência?

A verdade é que não existe, tanto quanto julgo saber, um sinónimo para designar a idade que vai dos quarenta e muitos aos sessenta e poucos, ou seja, entre a idade madura e a velhice. Numa altura em que esta gente, nova de mais para se reformar, mas velha de mais para trabalhar, se vê muitas vezes perdida, considerada inútil e sem espaço na sociedade, parece-me muito pertinente.

Envelhescência, por analogia com adolescência, idade entre o início da puberdade e o estado adulto?

Resposta:

Penso que com a pergunta se pretende saber se a palavra proposta se enquadra em algum padrão da morfologia do português. A resposta é dada pelo próprio consulente.

Contudo, cabe-me fazer a seguinte advertência: a palavra adolescência provém do latim por via erudita e não exibe radical que remeta semanticamente para a fase ulterior da vida humana, a juventude, a qual pode englobar a adolescência. Se assim fosse, dir-se-ia "juvenência" ou "juventência", porque se trata da fase que precede antecede a juventude1.

Embora o neologismo proposto pelo consulente se afigure bastante expressivo, os dicionários registam as palavras senescência, «processo de envelhecimento» e «processo de tornar-se senil», e senescente, «que está em processo de envelhecimento» (cf. Dicionário Houaiss). Penso que estas palavras se aproximam do que o consulente pretende, mas é certo que também são semanticamente próximas de senilidade e senil. Parece, portanto, que para as noções em causa ainda aguardam a fixação de um termo específico — talvez o neologismo agora proposto seja um bom candidato.

1 Existe juvenescimento, «ato ou efeito de juvenescimento», sendo juvenescer o mesmo que rejuvenescer (ver Dicionário Houais e Aulete Digital). Por outras palavras, juvenescimento não designa o processo conducente a uma nova f...

Pergunta:

A seguinte frase, retirada de Diário, de Sebastião da Gama, é assim pontuada pelo autor:

«A aula de hoje foi uma conversa animada, calorosa, por vezes, sobre as redações. Cada qual fazia ler ou lia a sua e depois a plateia criticava ou criticava eu.»

Por uma questão de ritmo de leitura, a ter sido eu a escrevê-la, pontuá-la-ia da seguinte forma:

«A aula de hoje foi uma conversa animada, calorosa, por vezes, sobre as redações. Cada qual fazia ler, ou lia a sua, e depois a plateia criticava, ou criticava eu.»

Estaria a cometer um erro ao colocar a vírgula antes de ou? Em que casos se pode e em que casos não se deve fazê-lo?

Resposta:

A vírgula colocada antes de ou não é um erro, mas também não se pode dizer que seja obrigatória. Muito depende de se considerar que antes de ou há uma pausa — e esse juízo, pela sua subjetividade, pode variar.

E. Bechara, na sua Moderna Gramática Portuguesa (2002, pág. 609) indica que:

[...] [se emprega vírgula] para separar orações coordenativas alternativas (ou, quer, etc), quando proferidas com pausa:

Ele sairá daqui logo, ou eu me desligarei do grupo.

OBSERVAÇÃO: Vigora esta norma quando ou exprimir retificação:

Teve duas fases nossa paixão, ou ligação, ou qualquer outro nome, que eu de nome não curo [...]1

Se denota equivalência, não se separa por vírgula o ou posto entre dois termos: Solteiro ou solitário se prende ao mesmo termo latino.

Nesta ótica, parece de recomendar o uso da vírgula antes de ou na frase apresentada pela consulente, até porque a conjunção liga orações («cada qual fazia ler ou lia a sua» e «a plateia criticava ou criticava eu»), à semelhança do prime...

Pergunta:

Gostava de saber o contraste entre a elipse e a prolepse, visto que ambas representam um avanço no tempo.

Agradeço desde já a vossa disponibilidade para responder de forma clara e congratulo-vos devido ao vosso serviço pela língua portuguesa.

Resposta:

Na teoria da narrativa ou em narratologia, elipse constitui apenas, para usar a expressão do consulente, um «avanço no tempo», na medida em que contribui para acelerar a ação narrada. Assim, no âmbito dos estudos em referência, a elipse consiste na «[...] eliminação de partes da acção que ajudam à economia da narrativa e não são importantes para a compreensão da história narrada» (Carlos Ceia, Carlos Ceia, s. v. Elipse, E-Dicionário de Termos Literários, coord. de Carlos Ceia). Por exemplo, em Os Maias, de Eça de Queirós, existe uma elipse do capítulo II (que termina com a morte de Pedro da Maia, sendo Carlos da Maia ainda um bebé) ao capítulo III (anos depois, em Santa Olávia).

Quanto à prolepse, trata-se de uma «alteração da ordem sequencial dos acontecimentos, antecipando alguns que ainda não tenham ocorrido ou fazendo simplesmente um sumário de uma situação que virá a ocorrer» (Lurdes Trilho, s. v. Prolepse, E-Dicionário de Termos Literários, idem)

Recorde-se que elipse é também o termo que designa um processo sintático (ver também os Textos Relacionados).