Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Trabalho na area de design e comunicação, e estamos a desenvolver um projecto que vai endereçar a literacia de seguros/planos de saúde com o objectivo de descomplicar conceitos e termos. A nossa ideia é definir essa linguagem como “segurês”, e gostaríamos de saber se existem direitos de autor ou se poderia haver alguma implicação de futuro. 

 

Questão escrita de acordo com a norma ortográfica de 1945.

Resposta:

A opção pelo termo segurês pode ser adequada para referir de forma sintética a linguagem especializada dos seguros.

Trata-se de uma palavra bem formada, mais precisamente um nome derivado de outro nome, neste caso, seguro (diz-se que é um nome denominal), de acordo com o modelo de outros derivados pelo mesmo sufixo -ês: economês (a linguagem ou gíria dos economista), eduquês (a linguagem dos profisionais da educação), jornalês (a linguagem dos jornalistas), maternalês (a linguagem das mães quando falam aos bebés e crianças pequenas), mimalhês (a linguagem infantilizada), sociologuês (a linguagem dos sociólogos)1, termos a que se pode juntar ainda futebolês.

Contudo, ao uso de economês, eduquês e jornalês não é estranha uma atitude crítica, pois trata-se de palavras que visam muitas vezes a excessiva especialização da linguagem usada em certos ramos de atividade ou aos tiques e modismos que a caracterizam.

Talvez se possa contornar essa (eventual) dificuldade usando a perífrase «a linguagem de seguros e planos de saúde» e, depois, como nota irónica ou quase humorística, falar do segurês (ex: «os mistérios do "segurês"» ou «como decifrar o "segurês"», colocando a palavra entre aspas, como indicação de distanciamento crítico). Mas , se os problemas apontados não são de molde a criar equívocos, a forma segurês pode de facto constituir a maneira mais simples e direta de identificar o tema.

 

1 Cf. Graça Rio-Torto et al. Gramática Derivacional do Português, 2.ª ed., Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimb...

Pergunta:

Considere-se a frase:

«É chegada a hora da partida.»

Qual a voz verbal desta oração? É possível existir voz passiva com verbo de ligação e intransitivo?

Obrigado

Resposta:

Não se trata da voz passiva, mas sim de uma construção antiga (um arcaísmo) do verbo chegar, equivalente ao pretérito perfeito simples do indicativo:

(i) «É chegada a hora da partida.» = «Chegou a hora da partida.»

O verbo é intransitivo e, portanto, não tem voz passiva.

Sobre este uso, frequente com chegar e outros verbos na Idade Média, dizia a filóloga e linguista brasileira Rosa Vírgínia Mattos e Silva (1940-2012) o seguinte1:

«Com um subconjunto de verbos classificados como intransitivos, ocorriam no período arcaico e até, pelo menos, no século XVI, sequências constituídas de ser + PP [= particípio passado], para expressão do "acto consumado" [...], ou seja, do aspecto concluído ou perfectivo. São verbos tais como: nascer, morrer, falecer, passar (= "morrer"), chegar, ir, correr (= "passar o tempo"). Veja-se, por exemplo, o refrão desta cantiga de Pai Gomes Charinho:

Idas som as frores
d'aqui bem com meus amores!

e o início desta de Pedr'Amigo de Sevilha [...]:

Quand'eu um dia fui em Compostela
em romaria, vi ũa pastor
que, puis fui nado, nunca vi tan bela.

A autora citada apresenta, entre outros exemplos medi...

Pergunta:

Recentemente fui informado que a palavra reconceção e reconceber não se encontram dicionarizadas.

Ora, trata-se, no essencial, de «tornar a conceber». Há alguma razão para que este prefixo não possa ser utilizado, tornando a palavra como portuguesa?

Há muitos exemplos de palavras em que a (possível) utilização do prefixo não se encontra nos dicionários, todavia há palavras constituídas com o re que estão presentes, como por exemplo, o verbo rever («tornar a ver»), reconhecer («voltar a conhecer»).

Agradeço a atenção.

Resposta:

As palavras em questão estão corretas.

O prefixo re- é acessível a qualquer falante para formar derivados, sobretudo de verbos e nomes de evento relacionados com esses verbos. Isto significa que, muitas vezes,o uso de re- é equivalente ao de expressões adverbiais como «outra vez»,«de novo» ou «novamente». É, portanto, legítimo formar reconceber e reconceção.

Como bem observa o consulente, há muitas palavras prefixadas com re- que decorrem de uma necessidade pontual e, não tendo uso sistemático, não se  encontram, por isso, dicionarizadas.

 

1 Lê-se em Graça Rio-Torto et al., Gramática Derivacional do Português (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, p. 49): «O prefixo re- acopla-se preferencialmente a bases verbais, explicitando repetição, iteração do que estas denotam (recobrir, reeditar, reconstruir, reincidir). Em virtude da sua semântica, que implica a repetição de um EVENTO , e não de uma ENTIDADE (*remesa, *retelhado), este prefixo não seleciona bases nominais, a não ser quando eventivas (reeducação, reelaboração). O valor de iteratividade e de recursividade de re- (cf. rematricular ‘matricular de novo, voltar a matricular, matricular pela segunda vez’, retelhar ‘telhar de novo, voltar a telhar’) pode expandir-se para um valor conexo, como o de intensidade, derivado do de iteração: recurvo ‘bastante curvo’, resseco ‘duas vezes seco, muito seco’, revelho ‘muito velho’).»

 

 

Pergunta:

Gostava de conhecer a etimologia da expressão «tens cada uma».

Poderiam explicar-me, por favor, qual é a origem dela e os possíveis usos? Muito obrigada.

Resposta:

Não foi possível dispor aqui de dados factuais sobre a génese e difusão de «ter cada uma», mas trata-se de uma expressão idiomática que, como outras, tira partido do uso de pronomes pessoais de 3.ª pessoa, de outro tipo de pronomes e de adjetivos no género feminino.

Encontram-se, a par do caso em apreço, outros exemplos idiomáticos de uma, em que esta forma parece referir-se vagamente a um elemento omitido (elipse), interpretável como «coisa» ou uma outra palavra do género feminino1:

«tens (com) cada uma» = «tens cada ideia/resposta/reação» (exprimindo surpresa, censura, rejeição; é possível ocorrer a preposição com);

«todos à uma» = «todos ao mesmo tempo» (como se todos tivessem uma mesma vontade);

«não dar uma para a caixa» = «ser incapaz de dar resposta a um assunto ou a uma tarefa» («não acertar nunca»);

«não dizer/responder uma nem duas»: «não ter nenhuma reação, não dar resposta  ou satisfação».

Também figura na expressão «de/das duas, uma», em referência a duas opções ou duas condições: «das duas, uma: ou comes a sopa, ou não tens sobremesa.»

Igualmente se fixou na locução descontínua «à uma...  à outra», que equivale a «por um lado... por outro...»: «Ele foi duramente criticado: à uma, porque não fez o que devia; depois, porque ocupa um lugar de responsabilidade na empresa.»

Como foi dito no começo da resposta, outras formas pronominais e adjetivais no género feminino são recorrentes na linguagem idiomática:

«Agora é são/vão ser elas!» (quando se fala das consequências de uma alguma imprudência ou de algum erro);

«(andar, viver, estar) na boa vai ela» («ter uma vida despreocupada, divertida e até irresponsável; expressão geralmente depreciativa);

Pergunta:

Gostaria de saber se existe alguma regra que obrigue a escrever todos os números por extenso numa ata?

Resposta:

Em Portugal, no âmbito da legislação em vigor, não existe disposição que obrigue a escrever por extenso os números que ocorram no texto de uma ata.

Com efeito, se, em várias áreas de atividade ou administração, os números continuam a escrever-se por extenso, é porque tal prática parece decorrer de normas internas decorrentes de razões já identificadas em 2002 no Ciberdúvidas por Rui Pinto Duarte: por um lado, a maior segurança que dá a escrita por extenso e, por outro, a tradição notarial.

A publicação do novo Código do Procedimento Administrativo em 2015, conforme o Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, não trouxe alterações ao art.º 34.º, que, relativo às atas de reunião, não inclui nenhuma indicação quanto à necessidade de escrever os números por extenso.