Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na minha profissão, sendo hispanofalantes a maioria dos meus alunos, deparo-me sistematicamente com o que me parece ser um uso indevido da preposição por (e as suas contrações), mas não tenho a certeza de como lhes explicar esta questão.

Vejo muitas vezes formações como:

O jogo foi cancelado pela tempestade. (devia ser «por causa da tempestade»)

Estamos confinados pela Covid. (devia ser «por causa da Covid»)

Não posso sair pela porta, visto que não tenho a chave. (pretende-se dizer «tenho de ficar em casa por causa da porta»)

A lei foi escrita pelo presidente, que cometeu um crime. (pretende-se dizer «por causa do crime do presidente»)

Os erros nas duas últimas frases parecem-me particularmente graves; gera-se confusão com as preposições de movimento e com os agentes da passiva. No entanto, há outras situações em que, aparentemente, podemos usar tanto por como «por causa de»:

A caravela, pelas suas características, era a embarcação ideal para navegar naquelas condições. (ou "por causa das suas características")

O livro, pela sua dificuldade, tem de ser lido por partes. (ou "por causa da sua dificuldade")

O empregado, pela sua experiência, devia ser promovido. (ou "por causa da sua experiência")

Como posso explicar em que casos posso ou não usar ambas as alternativas?

Muito obrigado desde já.

Resposta:

Como em espanhol o agente da passiva e a construção causal são muitas vezes homónimas, consistindo num grupo preposicional introduzido pela preposição por, é necessário recorrer à interpretação, operação que pode não dar o resultado esperado. É, pois, de prever que haja sempre deslizes dos hispanofalantes.

Mesmo assim, depois de um verbo na passiva («foi cancelado») ou verbos de movimento como sair ou entrar, compatíveis com um complemento preposicionado por no sentido de «através» («saí/entrei pela porta»), uma estratégia1 será a de o estudante hispanófono pensar na sua língua materna e substituir a construção de por causativo pelas locuções espanholas a causa de ou por causa de, conforme se pode concluir da leitura da Nueva Gramática de la Lengua Española (Real Academia Espanhola, 2010. p. 750; tradução livre):

«Os grupos preposicionais introduzidos pela preposição por são os que expressam de maneira mais característica a noção de CAUSA. O termo regido pode ser nominal (por simple curiosidad «por simples curiosidade»; por verdadero placer, «por verdadeiro prazer») ou oracional (por haber mejorado,«por ter melhorado»; porque le interesa, «porque lhe interesa»)[...] Se bem que as CAUSAS se distingam dos AGENTES (em geral,pessoas ou animais), pode haver uma sobreposição entre ambas as noções quando lhes é atribuída certa capacidade de atuação e decisão, como em Yo no grito , yo quedo anulado por las sombras (Donoso, Pájaro)[2]. A possibilidade de alternância entre por e por causa de e a cau...

Pergunta:

Em Portugal usa-se a expressão «Conservação e Restauro», por exemplo no nome de uma disciplina, como se designasse uma só actividade (um nome composto) e não duas actividades (a Conservação, por um lado, e o Restauro, por outro). Por isso se diz, por exemplo, «A Conservação e Restauro tem como objectivo…».

Julgo que numa situação dessas deveria ser usado o hífen e, eventualmente, a designação "Conservação-restauro" – por analogia quer com o nome conservador-restaurador (que, unanimemente é dado a quem exerce essa actividade), quer com a designação Conservation-restoration usada por algumas instituições internacionais.

A minha questão é: gramaticalmente é correcto usar-se «Conservação e Restauro» dessa forma ou seria preferível usar-se “Conservação-restauro” ou outra alternativa?

A minha pergunta tem que ver com um comentário que fiz num texto que publiquei há dias e com alguns comentários que esse comentário suscitou.

O consulente segue a norma ortográfica de 1945. 

Resposta:

No caso em apreço, não se distinguem critérios gramaticais prévios que permitam identificar uma formulação como melhor que a outra. Muito depende da tradição, e, pelo que conta o consulente e pelo que se constata, a área técnica e disciplinar em causa é conhecida como «conservação e restauro» (ou «Conservação e Restauro»). Não é que "conservação-restauro" seja forma incorreta, mas de conservador-restaurador não decorre forçosamente que a forma hifenizada deva ser empregada.

No entanto, curioso é também reparar que «conservação-restauro» e «conservação e restauro» ocorrem, por exemplo, na oferta curricular de uma universidade, presumivelmente como maneira de distinguir um tronco comum («conservação-restauro» para a licenciatura) e depois a especialização num dos ramos («conservação e restauro», para o mestrado).

Pergunta:

Sempre tive a dúvida, e agora deparo-me com o problema numa revisão que estive a fazer. Devemos escrever «zona Euro» ou «Zona Euro»?

Um instrumento como o Linguagista afirma que as duas palavras devem estar com maiúscula, «por questões de analogia» (?!), mas sinceramente não me parece haver nenhuma justificação forte para tal.

Estarei errado?

Resposta:

A forma «zona Euro» é discutível, porque a maiúscula inicial não é inerente à grafia de euro (cf. casos como dólar ou real, que se escrevem com minúscula inicial). Mas, reformulando a questão, pode perguntar-se o que é preferível, se «zona euro», se «Zona Euro». Como parece não haver razões para desempatar e recomendar apenas uma das grafias, terá o consulente de definir uma opção e seguir o mesmo critério ao longo de todo um documento.

De qualquer modo, observe-se que a escrita da denominação em apreço, equivalente a «zona do euro», pode alinhar com situações de facultatividade do uso de maiúsculas  e minúsculas iniciais, previstas na Base XIX, 2, do Acordo Ortográfico de 1990. Além disso, do ponto de vista semântico e referencial, o uso de «zona euro» e o de «Zona Euro» são muito semelhantes, porque no primeiro a locução funciona como expressão definida, um tipo de designação que tem propriedades iguais ou semelhantes às de um nome próprio, que é o segundo caso: ambos têm um referente único, que, nesta situação, é a entidade política e financeira constituída por vários países da União Europeia (os que aderiram à moeda única, o euro).

Assinalem-se ainda as oscilações no uso de maiúsculas/minúsculas com esta expressão, como se pode confirmar em documentos da UE e outros, muitas vezes associados à mesma entidade no conjunto das instituições europeias.  Acresce que no 

Pergunta:

A questão foi levantada no ano 2000, por outro consulente, mas ciente das variações da língua ao longo do tempo, pergunto, novamente, se: haverá alguma diferença de sentido entre ex-ministro e «antigo ministro»?

Ao responder à consulta, argumentava-se que a tendência actual é de empregar o elemento ex- seguido do substantivo, de preferência ao uso do adjectivo antigo. Contudo, faltará dilucidar se esta tendência tem respaldo de alguma justificação semântica mais substantiva. E, se, entretanto, a tendência se terá invertido.

O consulente segue a norma ortográfica de 1945.

Resposta:

A forma prefixada por ex- e a construção adjetival com antigo continuam a configurar expressões sinónimas, como expôs Teresa Álvares há mais de 20 anos e como se pode exemplificar nos usos atestados por uma notícia do arquivo do Ciberdúvidas.

O prefixo ex- equivale semanticamente a antigo, como se infere do seguinte comentário associado à entrada ex- da Infopédia: «[Ex- é] prefixo que exprime a ideia de movimento para fora, separação, extração, afastamento e significa aquilo que alguém foi mas já não é, quando seguido de nome que indique estado ou profissão e esteja a ele ligado por hífen.»

Quanto a antigo, conta este adjetivo, entre as suas aceções, a de «que teve em tempo anterior um lugar que já não ocupa», significado, portanto, comum a "ex-" (ibidem).

Pergunta:

Estou fazendo a tradução de um texto em língua francesa em que consta o vocabulário fol, variação arcaica de fou, o mesmo que louco.

Gostaria de saber, por favor, qual vocábulo em português arcaico designa «louco» ou «doido»?

Resposta:

Existe a palavra sandeu, que ainda hoje os dicionários registam com o sentido de «tolo» e «louco»1., como é o caso do Dicionário Houaiss:

«sandeu Uso: pejorativo. 1    caracterizado por sandice, que envolve ou consiste em sandice Ex.: <a devoção sandia com que cercou aquela crença> <uma página pejada de um enternecimento s.>; 2    que diz ou pratica tolices; que é tolo, pateta; 3    que age simploriamente, com ingenuidade; tonto
n substantivo masculino; Uso: pejorativo. 4    indivíduo que age como um tolo; idiota, pateta; 5    indivíduo que diz sandices, coisas sem nexo, loucuras.»

Mas note-se que fol, um empréstimo do francês, também se documenta na poesia galego-portuguesa2.

1 Cf. Cantigas Medievais Galego-Portuguesas, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

2 Ibidem.