Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de pedir a vossa ajuda quanto ao seguinte: atualmente, há vários documentos oficiais e académicos que usam abundantemente o adjetivo "criterial", de modo a poder distinguir, por exemplo, uma avaliação criterial (baseada em critérios) de uma avaliação normativa.

Não encontrei referência a esta palavra em dicionários como o da Porto Editora (infopedia) ou o Vocabulário Ortográfico do Português. Há algum dicionário que a defina ou o seu uso é incorreto?

Grata pela atenção.

Resposta:

Criterial é palavra correta que, por enquanto, tem uso sobretudo especializado.

Confirma-se que a ausência de registo de criterial mesmo nos dicionários eletrónicos recentes, entre eles o da Infopédia e o Priberam (ainda que neste último, no momento de eleaboração desta resposta se anuncie para breve a disponibilização de uma entrada).

De um ponto de vista estritamente formal, criterial é um adjetivo bem formado, segundo o modelo de caraterial (ou caracterial). Por outro lado, é vocábulo com uso especializado, por exemplo, nas ciências de educação, em cujos textos ocorre há já mais de duas décadas em expressões como «avaliação criterial» (cf. documento da Direção-Geral de Educação) ou «análise criterial», que decalcam usos do inglês criterial também na mesma área de estudo.

Criterial tornou-se, portanto, uma palavra legítima no âmbito educativo, onde significa genericamente «relativo a critérios» ou «fundado em critérios». Porém, fora deste uso, na linguagem corrente, tem mais tradição criterioso: «escolha criteriosa» será, portanto, expressão mais adequada do que «escolha "criterial"».

Pergunta:

Qual é a origem do sobrenome Paulos?

Resposta:

Trata-se de um apelido (sobrenome) que talvez tenha origem no nome próprio Paulo.

Pode propor-se como hipótese que o -s de Paulos seja uma marca de plural: por exemplo, considere-se, por conjetura, que uma família, com um antepassado chamado Paulo, era conhecida numa aldeia ou num bairro vilego ou citadino, como «os filhos/netos do Paulo», donde «os Paulos; mais tarde este nome teria passado a usar-se como apelido (sobrenome).

Note-s, porém, que Paulos é apelido também conhecido na Galiza, nas regiões litorais (Vigo, Arousa e Corunha), talvez originário de uma adaptação do latim Paulus". (Cf. Apelidos de Galicia). Nada impede que o apelido tenha vindo da Galiza, onde poderia ter-se fixado da maneira que se expôs. Como se sabe que no século XVIII e XIX houve uma corrente migratória importante da Galiza (sobretudo do sul desta região) para Portugal, é também plausível que o apelido tenha aí origem.

Será, portanto, necessário que o consulente investigue um pouco a história de família e se embrenhe numa área que já é da genealogia.

Cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa.

Pergunta:

Porque se definiu que a tradução escrita do prefixo pró, elemento de origem grega, se escreve acentuado em português?

Porque um acento vem mudar tanto a definição de um mesmo conjunto de três letras: pro e pró?

Grata.

Resposta:

A forma prefixal pró- não é sempre de origem grega. De facto, em muitas palavras – pró-eutanásia, pró-aborto, pró-alemão – tem origem latina, na preposição pro, com vários significados («diante de; em cima de, sobre; por, a favor de; à maneira de; em lugar de; pelo preço de; segundo, conforme; durante, em, dentro de (exprimindo tempo)», Dicionário Houaiss, s. v. pro-).

Em todo o caso, há palavras em que figuram as formas pró ou pro sempre integradas sem hífen em palavras construídas em grego, como sejam prólogo e problema.

Acontece que a acentuação original do grego não é transposta tal e qual para português. Na verdade, os acentos do grego (antigo ou na sua versão científica) e os acentos do português estão sujeitos a regras diferentes, porque se enquadram em alfabetos e regras de escrita diferentes, além de estarem envolvidos num processo de transmissão por via do latim que trouxe alterações na sua colocação.

Assim, por exemplo, πρόλογος, com a preposição e advérbio πρό ("pró") convertida em prefixo, passou ao latim como prolŏgus, e daqui para várias línguas europeias, entre elas, o português, sob a forma prólogo, que mantém ou parece manter a acentuação grega original. Mas o grego πρόβλημα passou ao latim como problēma, forma com acento tónico na penúltima sílaba que tomou formas próximas em línguas mais tardias, como o português, que conservou a acentuação tónica do latim, mas não a do grego.

Pergunta:

Em Auto de Filodemo, de Luís de Camões, há uma passagem coloquial assim:

«Dionísa: Cuja será? Solina: Não sei certo cuja é.»

Em linguagem hodierna, seria mais comum ouvir/ler «de quem será?», «não sei certo de quem é».

Esse uso de cujo lembra-me o uso de cujus no latim:

Cujus filius Marcus est? («De quem Marcos é filho?»)

Em seu livro, Tradições Clássicas da Língua Portuguesa, o Padre Pedro Andrião diz ser possível tal uso e dá-nos uma lista grande de exemplos nos autores clássicos, desde Camões, Sá de Miranda, a Garrett, Camilo etc.

Pois então, vos pergunto, que recomendam? É lícito o uso?

Resposta:

Já não é uso atual em nenhum dos países de língua portuguesa.

O latim cuius significava «de quem» e era a forma que marcava posse (genitivo) do pronome relativo qui e do pronome interrogativo quis, os quais significavam «que, o qual, quem». Na fase medieval da língua, como Rosa Virgínia Mattos e Silva1 aponta, encontra-se atestado este uso de cujo/a:

(1) E o nobre Venancio cuja [= de quem] era a vila (Diálogos de São Gregório).

(2) E d'hi hũu certo tempo tornou a cadella cuja [=de quem] era a casa (Fabulário Português)

No Corpus do Português (Mark Davies) encontram-se exemplos mais tardios deste valor de cujo/a, mesmo em José de Alencar (1829-1877), mas parece tratar-se de casos relacionados com uma linguagem erudita ou arcaizante.

Em suma, é sempre possível e aceitável recuperar um arcaísmo, como acontece por vezes na expressão literária. Mas será estranho e até desadequado empregar cujo no sentido de «de quem» na língua corrente, mesmo em instâncias formais, até pelo risco de comprometer a inteligibilidade do discurso.

 

1 Cf. Rosa Virgínia Mattos e Silva, O Português Arcaico. Uma aproximação, vol. II, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008, p. 244.

Pergunta:

Contacto-vos a propósito de uma questão que tem sido recorrente no âmbito da minha prática letiva. A propósito da evolução fonética, particularmente no processo de assimilação, tenho visto em alguns manuais ser usada como exemplo a evolução de ad sic para assim ou de ipse para esse, assumindo-se assim que, em ad sic o fonema /d/ evolui para /s/ e, em ipse, o mesmo se passa com o fonema /p/.

A minha questão é simples: tratando-se de evolução fonética – e de fonemas, portanto – não seria mais correto considerar-se que em ambos os casos ocorre uma síncope? A duplicação da consoante s advém, a meu ver, de uma convenção ortográfica, até porque, efetivamente, não pronunciamos o fonema /s/ duplicado.

Gostaria de saber a vossa opinião, que muito respeito, em relação a este tópico.

Grato pela vossa disponibilidade.

Resposta:

A hipótese proposta pelo consulente não é descabida, do ponto de vista do funcionamento do português desde os primórdios galego-portugueses. Contudo, não é de todo seguro que assim decorra da forma latina hipotética *ad sic. Quanto ao passo de ipse a esse, há indícios bastante antigos de assimilação, e não de síncope.

Embora uma nota etimológica do Dicionário Houaiss interprete historicamente o advérbio assim como resultado da junção da preposição latina ad («direção, movimento, aproximação») ao advérbio também latino sic («assim, deste modo»), outras fontes não corroboram esta etimologia, preferindo relacionar a forma portuguesa apenas ao advérbio sic, considerando que o a- inicial surgiu como ampliação do corpo do étimo latino, em época bastante recuada1.

Em relação à análise histórica de esse, considera-se ter ocorrido uma assimilação já no próprio latim, como observa José Joaquim Nunes, no Compêndio de Gramática Histórica Portuguesa (9.ª edição, Lisboa, Clássica Editora, 1989, pp. 127/128:

«Ascende ao latim vulgar a assimilação de p [...] ao -s- seguinte parece ser mais antiga e ter-se operado já na própria língua clássica; prova-o a existência de isse, cujo feminino era o nome de uma cadeia, celebrada por Marcial [38-104 d. C.] num...