Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na frase «Está pegando fogo!», qual é o sujeito?

Resposta:

O sujeito não está expresso, diz-se que está subentendido, sendo interpretado a partir do contexto: se a exclamação é feita numa casa que arde, depreende-se contextualmente que o sujeito subentendido se refere ao que pega fogo, ou seja, a casa.

Pergunta:

A palavra alerta sempre foi usada sem o "apoio" do em.

Inclusivamente, nos anos que estive na tropa, nunca ouvi ninguém perguntar a um soldado de sentinela se estava «em alerta»! Mas, unicamente, «alerta»: «estás alerta?» ou seja, «estás vigilante, de vigia, de sobreaviso, atento»?

Pelo que ouço e leio hoje, tudo ou quase tudo é antecedido por em.

Nessa lógica, será correcto escrever-se:

«Estou em atento, estou em vigilante, em de vigia»?

Será mais uma influência e adopção da maneira de escrever e de falar da língua espanhola e francesa, onde o em é abundantemente utilizado?

Por outro lado, também está em grande moda, substituir o morreu por «perdeu a vida»! Dizem: «foi encontrado sem vida», e não «foi encontrado morto», «foi encontrado com vida», e não «vivo»!

Logo, se isto está bem, porque não dizer «foi encontrado com morte»?

Na expectativa do favor dos vossos esclarecimentos, com as minhas saudações, subscrevo-me antecipadamente grato.

Resposta:

1. Segundo o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, a palavra alerta pode ser um advérbio (equivalente «com vigilância»), um adjectivo dos dois géneros («vigilante»), um substantivo masculino («sinal para se estar vigilante») e uma interjeição («cautela!», «sentido!», «cuidado!»). O mesmo dicionário não regista a locução «em alerta», tal como outros (cf. Dicionário Houaiss, Dicionário Unesp do Português Contemporâneo, Aulete Digital).

No entanto, não é impossível a locução adverbial «em alerta», porque alerta pode ser substantivo precedido por preposição. Além disso, consultando o Corpus do Português, encontra-se uma ocorrência da locução «em alerta» num texto do século XIX, o célebre romance Escrava Isaura, do escritor brasileiro Bernardo Guimarães:

Leôncio, portanto, não só encarcerava com todo o rigor a sua escrava, como também armou todos os seus escravos, que daí em diante distraídos quase completamente dos trabalhos da lavoura, viviam em alerta dia e noite como soldados de guarnição a uma fortaleza.

A locução, portanto, não é assim tão recente em língua portuguesa. Além disso, em Portugal, com a proliferação de avisos relativos à prevenção de incêndios ou ao estado do tempo, aumentou o número de ocorrências como «estado de alerta», a qual pode dar passo a «estar em alerta».

Não pode, portanto, afirmar-se que «em alerta» seja expressão incorrecta.

2. Quanto a substituir morrer por «perder a vida», e outros casos semelhantes, trata-se de usos eufemísticos que, não sendo ilegítimos, correm o risco de ...

Pergunta:

Haveria alguma restrição para utilização do pronome quem na posição de predicativo do sujeito?

Exemplos: «Ela é quem eu julgo inteligente.» (Ela é a pessoa a quem julgo inteligente.)

«Ela é quem fez isso.» (Ela é a pessoa que fez isso.)

Resposta:

Em frases como as apresentadas, quem faz parte de uma construção clivada ou de foco, isto é, de uma construção que visa realçar certos constituintes de uma  frase. Por isso, é difícil considerar que as orações introduzidas por quem sejam realmente relativas livres. Como orações ocorrendo em frases equativas, não há restrições sobre o uso de quem a introduzi-las, quer o pronome tenha a função de sujeito («Ela é quem faz isso») ou complemento direto («Ela é quem eu julgo inteligente»). O que acontece é que, nestas construções clivadas, observam-se fenómenos de concordância que obrigam a que o verbo ser concorde temporalmente com o verbo do que parece ser uma oração relativa livre. Por outras palavras, a última frase ficará correta se o verbo ser passar ao pretérito perfeito do indicativo, tal como acontece com o verbo fazer na oração predicativa: «Ela foi quem fez isso.»

Pergunta:

Na frase, «Ao todo éramos três», qual a função sintáctica de «ao todo».

Grata pela atenção.

Resposta:

É um modificador do predicado. A locução adverbial «ao todo», que significa «por junto», «no total» (ver dicionário da Academia das Ciências de Lisboa), modifica a forma verbal «estávamos», no sentido de «estávamos presentes».

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem uma dúvida que surgiu na classificação da palavra infelizmente quanto à sua formação.

O DT não refere a «derivação por prefixação e sufixação» e há quem defenda que ela deixou de ser considerada. Deste modo, a parassíntese substitui aquilo que designávamos como derivação por prefixação e sufixação. Mas a definição de parassíntese do DT é clara, e não me parece que a palavra infelizmente possa ser considerada derivação parassintética. Devemos continuar a considerar esta palavra como derivada por prefixação e sufixação? Devemos distinguir claramente estes dois processos: «derivação por prefixação e sufixação» e parassíntese?

Obrigada!

Resposta:

O Dicionário Terminológico (DT), que se destina a apoiar o ensino da gramática em Portugal, refere a derivação (B. 2.3.1). Esta nunca deixou de ser considerada, dela fazendo parte a afixação, que compreende a parassíntese, para além da prefixação e da sufixação. Por conseguinte, infelizmente deve ser analisada como palavra derivada por sufixação, considerando que a sua base é o adjectivo infeliz (este, por sua vez, derivado de feliz por prefixação).1 Mas, note-se, não se trata de parassíntese, porque, na análise de infelizmente, não se admite que o prefixo in- e o sufixo -mente se associem ao mesmo tempo à base feliz.

A parassíntese ocorre em casos como o de anoitecer, no qual a afixação de dois elementos é simultânea: a- + noit- + -ecer. Anoitecer não deriva de "noitecer" nem de "anoite", porque a sua base é noite, palavra à qual se juntam ao mesmo tempo a- e -ecer.

Resta acrescentar que, no DT, a derivação compreende duas rubricas: «processos que envolvem adição de constituintes morfológicos» e «processos que não envolvem adição de constituintes morfológicos». É nos primeir...