Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

As palavras liberar e libertar podem ser utilizadas como sinónimas? Se sim, estaria correcto utilizar ambas no Brasil e em Portugal (ou outro país de língua portuguesa)?

Resposta:

O verbo liberar usa-se mais no Brasil do que em Portugal. Com efeito, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, regista o verbo liberar como sinónimo de libertar, nas acepções de «tornar livre ou quite» e «desobrigar», mas classifica-o como brasileirismo quando é usado em lugar de liberalizar, no sentido de «autorizar, como medida geral, o livre mercado de certas mercadorias», embora com o significado de «conseguir ou conceder a liberação de determinada quota de mercadoria, cuja fiscalização o Estado exerce em épocas normais» o mesmo dicionário não indique uso preferencial numa das variedades em apreço.

De qualquer modo, confirma-se que, em português europeu, liberar é de uso muito limitado, visto o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, não acolher este verbo, e uma pesquisa no Corpus do Português de Mark Davies e Michael Ferreira revelar que as 67 ocorrências da forma liberar são todas provenientes de textos brasileiros, não havendo nenhuma recolhida em textos portugueses. Ainda sobre o corpus em referência, convém dizer que a frequência de outras formas da flexão do verbo – libera (43 ocorrências) e liberou (36 ocorrências) – aponta a mesma tendência, de claro predomínio das respectivas ocorrências em textos brasileiros e prática ausência em textos portugueses (3 ocorrências de libera, todas estão incluídas na frase latina «libera nos, Domine...»).

A respeito do uso de liberar noutros países d...

Pergunta:

Qual a regra que sustenta a passagem do verbo ir para vir quando se passa do discurso direto para indireto?

Por ex.:

«Vim cá hoje com muito sacrifício só para te dizer adeus», disse o velho do realejo à miúda.

O emissor do discurso indireto é o narrador, não a miúda.

Resposta:

Atendendo ao seu exemplo, que inclui o verbo vir em discurso directo, deve pretender saber o contrário DO que pede: quais os critérios que determinam a passagem de vir para ir na passagem para o discurso indirecto?

Não há regras taxativas, porque tudo depende do ponto de vista do narrador. Assim:

1. Se o narrador intervier como personagem na acção, por exemplo, como familiar da dita «miúda», vivendo na mesma casa que ela, é possível:

«O velho do realejo disse à miúda que vinha cá com muito sacrifício só para lhe dizer adeus.»

Neste caso, ao contrário do que é habitual em exercícios de passagem do discurso directo para o discurso indirecto, mantêm-se o advérbio e o verbo vir.

2. No entanto, atendendo a que a pergunta parece proceder das necessidades decorrentes da construção de um exercício escolar, considera-se — muito por uma convenção, no fundo, discutível — que há certas regras (ou, melhor, critérios) que envolvem um certo distanciamento no tempo e no espaço referidos no discurso indirecto. Conforme a esta perspectiva é a seguinte frase:

«O velho do realejo disse à miúda que tinha ido (fora) lá com muito sacrifício para lhe dizer adeus.»

Nesta frase, em contexto narrativo, o narrador distancia-se espacial e temporalmente, usando o verbo ir, que, ao contrário de vir, não pressupõe um movimento de aproximação, em direcção ao enunciador.

Pergunta:

Numa consulta casual ao Dicionário Eletrônico Houaiss, peguei-me lendo todas as acepções do verbo mergulhar e notei algo que achei no mínimo curioso: na acepção 2, ele diz «afundar-se inteiramente em (água)», que é talvez o significado mais comum e utilizado do verbo, no entanto, o dicionário indica que, nesse caso, se trata de um verbo intransitivo e pronominal, dando como exemplos «mal viu o mar, mergulhou» e «os golfinhos mergulhavam(-se) com rítmica precisão».

Em outras palavras, diferentemente do que eu pensava, parece-me que o Houaiss (e também o Aurélio, pois chequei) não, digamos, "permite" o uso do verbo como transitivo indireto, muito utilizado popularmente em sentenças como «mergulhar no mar» ou «mergulhar na piscina». Afinal, no sentido de imergir-se num líquido, o mais correto é mesmo usar apenas as formas intransitiva e pronominal?

E mais: o dicionário Aurélio, embora também indique que se trata de um verbo intransitivo e pronominal se usado nesse sentido, utiliza exemplos como «mergulhou na lagoa». Como pode isso?

Resposta:

Eu não diria que os dicionários em causa não "permitem" o uso de mergulhar como transitivo indirecto. O que neles se faz é considerar não obrigatório o constituinte que indica o lugar onde se mergulha. Por outras palavras, esses dicionários atestam o uso de mergulhar com constituintes que marcam lugar, mas a estes não é dado o estatuto de complementos. Não sendo complementos, trata-se de adjuntos adverbiais, e o verbo mergulhar acaba por ser classificado como intransitivo, à semelhança dos verbos nadar, correr, brincar.

Pergunta:

Pode colocar-se ponto antes de «ou seja»?

Assim: «A consciência de uma mudança ocorre depois da mudança estar assimilada. Ou seja, é no futuro...»

Obrigada.

Resposta:

É possível, mas não se recomenda como prática sistemática, porque a locução «ou seja» tem por função esclarecer o sentido de um constituinte que, normalmente, já ocorreu antes na mesma frase.

Pergunta:

Há uns dias vi a palavra "entregáveis". Percebe-se que foi traduzida à letra do inglês "deliverable". É aceitável? Qual a melhor opção, neste caso?

Resposta:

A palavra entregável está bem formada e encontra-se dicionarizada, por exemplo, no Aulete Digital.

Já quanto a ser tradução adequada de deliverable, tudo depende do contexto, visto que apalavra inglesa pode ser usada como substantivo no sentido de «produto que uma companhia promete ter pronto para um cliente» (cf. Oxford Advanced Learner´s Dictionary). A partir desta acepção, a palavra deliverable pode ser aplicada, por extensão semântica, a outras realidades e situações, como se verifica no Linguee, onde ocorre traduzida como comunicação, prestação (no sentido de desempenho), resultado, resultado tangível, produto final.