Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Em primeiro lugar gostaria de agradecer pelo trabalho que têm vindo a desenvolver nesta página, é de louvar a precisão, a coerência, o conhecimento e empenho que os implicados dedicam às respostas de todos os falantes com dúvidas, como eu.

Há algum tempo que me debato com a dúvida no momento de traduzir a expressão espanhola «hacer/coger el relé», supostamente esta expressão vem do francês relais e utiliza-se muito no mundo da interpretação de cabine. Quer dizer que um intérprete traduz da língua em que é dada a conferência (imaginemos que é o inglês) para o espanhol (por exemplo) e os intérpretes das outras línguas apoiam-se na tradução desta cabine e «cogen el relé» para traduzir às suas respectivas línguas de chegada (no meu caso o português). Já consultei imensos dicionários e não consigo chegar a nenhuma conclusão. Seria possível sugerirem-me alguma expressão/palavra portuguesa que traduza esta situação?

Muito obrigada pela ajuda.

Resposta:

Diz-se «trabalhar em relé» (em contraposição a trabalhar directamente/em directo») mas não "fazer o relé"1. Coloquialmente, entre intérpretes, também se emprega «apanhar o relé», aparentemente equivalente literal de «coger el relé»2. Confirmo a origem de relé, segundo o Dicionário Houiass, do «fr[ancês] relais (sXIII), "cães deixados de reserva para substituir os que atuam em uma caçada"; "cavalos deixados no percurso de viajantes e caçadores para substituir os que vêm cansados"; "o lugar onde estas mudas ocorrem"; "equipe de substituição em uma corrida"; (1877) "aparelho em um circuito elétrico", de relayer, "render, revezar, substituir" com infl[uência] do fr[ancês] ant[igo] relais, "demora"».

Assinale-se que relé tem um homónimo, relé, que é variante de ralé, «plebe», sem relação etimológica conhecida com o francês relais.

1 Os meus agradecimentos ao dr. Garry Mullender (Faculdade de Letras de Lisboa), a quem devo quase toda a informação contida nesta resposta.

2 Note-se que a pessoa que fornece a tradução directa da língua de origem designa-se pivô, do francês pivot.

Pergunta:

Agradecia explicação do uso da preposição de contraída com o artigo na primeira designação e o emprego da mesma preposição, na sua forma simples, sem o artigo na segunda.

Grato pela vossa atenção.

Resposta:

O artigo definido, associado a um substantivo, delimita-lhe a a referência, torna-o mais concreto. Sendo assim, tendo em conta os contextos em apreço, vemos que, quando se emprega o artigo definido («a Saúde»), a expressão refere um sector de actividade, neste caso, as entidades que ministram cuidados de saúde. Sem artigo, «Saúde» remete genericamente para a condição física, como ocorre na expressão «ter saúde»; deste modo, quando se fala de «Delegação de Saúde», pretende-se salientar  a função de tal delegação, a qual diz directamente respeito ao acompanhamento do estado de saúde das populações, e não «à Saúde» institucional.

Pergunta:

Gostaria de saber o significado da palavra "palenódia" em Super Flumina de Camões.

Obrigado.

Resposta:

A forma correcta da palavra em apreço é palinódia, «retractação, num poema, daquilo que se disse em outro» (Dicionário Houaiss). "Palenódia" deve ser erro ou gralha, porque esta forma não se encontra atestada nem mesmo em textos quinhentistas; além disso, o i da sílaba -lin- justifica-se por razões etimológicas: «[do] gr. palinōdía, as, "canto diferente ou em outro tom; fig. retratação"», formado por pálin, '«de novo, com repetição; em sentido inverso», ōdê, ês, «canto, acção de cantar» e o sufixo -ía (idem).

Pergunta:

Na frase «O Senhor Sol conversava com o vento», que função desempenha o segmento «com o vento»? E sabendo que o verbo conversar implica bilateralidade, podemos considerar o sujeito da frase «o Senhor Sol», porque pratica uma acção, ou também podemos incluir "o vento", uma vez que o Sol não conversa sozinho?

Resposta:

O sujeito da frase é «o Senhor Sol» porque é com este constituinte que o verbo conversar concorda. Quanto a «com o vento», trata-se de um complemento oblíquo seleccionado pelo mesmo verbo.

Note que a definição de sujeito, por ser sobretudo sintáctica e não (apenas) semântica — ao contrário do que a consulente parece julgar quando se refere ao sujeito como «aquele que pratica a acção» — não permite considerar que os constituintes «o Senhor Sol» e «com o vento»  desempenham globalmente a função de sujeito. Por exemplo, sabe-se que «o Senhor Sol» é o sujeito, porque é este constituinte que desencadeia a concordância e não «com o vento», facto demonstrável pela substituição de «o Senhor Sol» por um pronome no singular e depois pela forma desse pronome no plural:

1. «Ele conversava com o vento.» —› «Eles conversavam com o vento.»

Em 1, o verbo passa ao plural, de forma a concordar com o plural eles. Mas se aplicarmos o mesmo teste a «com o vento», substituindo «o vento» pelo pronome de terceira pessoa do singular e passando depois esse constituinte ao plural, o verbo mantém-se no singular porque, na verdade, concorda sempre com a expressão «o Senhor Sol»1:

2. «O Senhor Sol conversava com ele.» —› «O Senhor Sol conversava com eles.»

1 A concordância em frases identificacionais tem regras próprias.

Pergunta:

Eu gostaria de saber a origem histórica do provérbio «Quando a esmola é demais, o santo desconfia».

Resposta:

Não encontro fonte que me permita dar conta das circunstâncias históricas em que o provérbio foi criado. O mais que se pode dizer é que este provérbio, como os outros, é interpretado numa perspectiva metafórica e tem várias formulações:

«Quando a esmola é demais [ou muita, ou grande], o santo desconfia.»

«Quando a esmola é grande, até o velho desconfia.»

«Quando a esmola é grande [ou muito grande, ou demais], o pobre desconfia.»

«Quando a  esmola vem, já o padre está cansado.»

«Quando a esmola vem, já o pobre está desfalecido.»

[Fontes: José Ricardo Marques da Costa, O Livro dos Provérbios Portugueses, Lisboa, Editorial Presença, 1999; José Pedro Machado, O Grande Livro dos Provérbios, Lisboa, Editorial Notícias, 1998; Dicionário de Provérbios, Porto, Porto Editora, 2009]