Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Poderiam-me dizer qual a origem de «bater as botas», de «mata cavalos» e de «borra botas», por favor?

Obrigada.

Resposta:

Não consegui encontrar fonte que me esclarecesse a origem precisa das expressões em apreço. Todas elas decorrem de processos metafóricos, mas reconstruir o contexto factual da sua formação e difusão é tarefa por agora inexequível.

No entanto, em relação a «bater as botas» ou, na forma que encontro mais frequentemente em dicionários de expressões populares, «bater a bota», Afonso Praça, no Novo Dicionário do Calão, Lisboa, Casa das Letras, 2005, adianta alguma informação sobre a respectiva origem metafórica:

«Bater a bota — Morrer. [Também bater as colheres; bater a caçoleta; bater o tacão; esticar o pernil; ir para a companhia dos pés juntos; ir para a quinta das tabuletas.] [Explicação do coronel Aleu de Oliveira: "À semelhança de quando um militar na presença de um superior dá um passo à retaguarda e dá a seguir meia volta, quando se vai a retirar, batendo com as botas no chão, o ir-se embora desta vida é conhecido como o bater da bota."]

["(...) `E depois, vocês sabem como é: quando a gente tem as coisas até dá pena não se servir delas. De repente, sem pensar, olha, vai um tirinho, o tipo bate a bota, é homicídio, apanha-se uma talhada que nunca mais acaba´(...), Mário Zambujal, Crónica dos Bons Malandros.]

["(...) E então que trepa! Tinha a cabeça rachada de alto a fundo, e os ossos, em roda, tremiam como uma trémola. Puseram-lhe a extrema-unção e esteve a bater a bota (...)", Aquilino Ribeiro, Terras do Demo.]»

Sobre as outras duas expressões, encontro só registros que não abordam a sua génese metafórica em António Nogueira Santos, Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1988), em Orlando Neves, Dicio...

Pergunta:

Já há algum tempo que ando com uma dúvida, pesquisei em vários sítios, acabando por ver duas formas de pronúncia para a palavra nevoeiro. Eu pessoalmente pronuncio "nevueiro", no entanto queria saber qual a pronúncia correcta:

"ne vo ei ro" (pronúncia = "nevueiro")

"né vo ei ro" (pronúncia = "névueiro")

Obrigado.

Resposta:

Diz-se "nevueiro" e não "névueiro". Em português europeu, a pronúncia que está fixada é [nɨˈvwɐjɾu] (ver Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa), ou seja, respondendo à pergunta, a sílaba átona ne- é articulada com e mudo (o e de de). É, portanto, não normativa ou marginal ao padrão a pronúncia dessa sílaba átona com e aberto, talvez em resultado de analogia com névoa.

Pergunta:

Qual é a forma correcta: «o financiamento da inovação empresarial», ou «o financiamento à inovação empresarial»?

Muito obrigado.

Resposta:

Emprega-se «financiamento de», embora não seja impossível «financiamento a», quando se quer vincar a noção de ajuda ou apoio financeiros.

Muitos substantivos derivados de verbos transitivos costumam seleccionar um complemento preposicionado (oblíquo), introduzido pela preposição de. Se se diz «financiar a inovação empresarial», a tendência é, portanto, dizer e escrever «financiamento da inovação empresarial».

No entanto, temos o caso de apoio, que é substantivo correspondente a apoiar, verbo transitivo, e, apesar disso, selecciona quer a preposição de quer a preposição a (cf. Francisco Fernandes, Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos, São Paulo, Editora Globo, 1995): «apoio da/à inovação empresarial». Também se pode referir a regência de ajuda, que selecciona as preposições a, de, em (idem). Deve vir daqui, por analogia, a associação de a com financiamento, uma vez que por este substantivo se entende frequentemente «apoio financeiro» ou «ajuda financeira». Mesmo assim, abstraindo o valor de beneficiação marcado por apoio ou ajuda e focando a simples ideia de «pagamento de dinheiro», parece-me preferível o uso de «financiamento de».

Pergunta:

Gostaria de vossa apreciação no que se refere à utilização de variantes gráficas (tais como abdome/abdômen; aluguel/aluguer; arrebentar/rebentar; assoalho/soalho; bêbado/bêbedo; biscoito/biscouto; cãibra/câimbra; catorze/quatorze; cociente/quociente; degelar/desgelar; xícara/"chícara"; enfarte/enfarto; flauta/frauta; registo/registro; etc.). São lícitas? Pode-se utilizá-las num texto formal? Existe regra na gramática normativa que as reja? E a legislação cobre-as legalmente? Poderia, hipoteticamente, utilizá-las num texto de redação de vestibular sem haver problemas? O corretor considera-las-á corretas? Um grande abraço e meus agradecimentos antecipados.

Resposta:

As variantes apresentadas não são apenas gráficas, porque algumas também envolvem contraste fonológico. Além disso, pares ou grupos de variantes têm de ser apreciados separadamente, não podendo definir-se critério ou norma aplicáveis a todas as alternâncias. De notar ainda que não há legislação sobre estes casos; mas o que existe em muitos dicionários são indicações sobre o uso das variantes, facilitando a tarefa a quem não as conhece. Assim, em relação aos exemplos incluídos na pergunta:1

abdome/abdómen, bêbado/bêbedo, cãibra/câimbra, cociente/quocientedegelar/desgelar são pares de variantes cujos membros têm igual aceitação;

— há pares constituídos por uma variante preferencialmente usada em português europeu e por outra mais usada no português do Brasil (não tenho dados sobre as outras variedades do português), como acontece com aluguer (Portugal)/aluguel (Brasil),2 catorze (Portugal, Brasil)/quatorze (sobretudo usado no Rio de Janeiro, Brasil)3 ; registo (Portugal)/registro (Brasil); enfarte (Portugal)/infarto (Brasil, onde também são possíveis infarto, enfarto e enfarte);

— outros pares são formados por forma mais corrente no uso, usada em contextos formais e informais, e outra forma de tom mais popular, possível só em contextos informais: rebentar (corrente)/arrebentar (popular); soalho (corrente)/assoalho (popular).

— exis...

Pergunta:

Qual o significado de Cidres em nome de rua? Haverá, em Portugal, outra ruas com este nome? Na cidade de Matosinhos, freguesia de Santa Cruz do Bispo, existe a rua referida. Sei que esse nome derivou do respectivo lugar «Lugar de Cidres»

Também agradecia, desde quando é o costume de se dar o nome de rua, dos lugares respectivos. Exemplos: «Lugar da Aldeia de Baixo» > «rua da Aldeia de Baixo»; «lugar do Mirão» > «rua do Mirão»; «lugar de Cidres» > «rua de Cidres» etc., etc. 

Resposta:

Nada sei dizer de concreto sobre a origem do topónimo Cidres. No Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, regista-se Oucidres, topónimo da região de Chaves (Trás-os-Montes, Portugal), sobre o qual também nada se sabe ao certo; diz Machado (op. cit.):

«Não é aceitável a hipótese recolhida por A. Costa, s. v.: «... corrupção do antigo português Oussida», o m. q. oussia [capela-mor, santuário, do latim *apsida].»

Em relação a Oucidres, A. de Almeida Fernandes (Toponímia Portuguesa Exame a um dicionário, 1999) considera que «[...] talvez se tenha aqui a raiz [pré-romana] ouc- de Ouca [...] [Ronfe, Guimarães e Sosa, Vagos]. Parece, porém, n[ome] pessoal em -is, talvez indígena romanizado (flaviense). C[om]p[arar] Ozecarus (*Ozecaris), para Zêzere, com o -i- tónico por metafonia de -is.»

Que relação se pode estabelecer entre Cidres e Oucidres? Há um caso parecido, o da etimologia de Zêzere, que remonta a Ozêzere. Também Cidres poderia ser resultado de uma forma muito semelhante a Oucidres por aférese da primeira sílaba: Oucidres > Cidres.

Mas outra hipótese é possível: Cidres como variante de Cidras, topónimo da região de Montalegre, originário de cidra (idem), no sentido de «cidreira», «fruto da cidreira» ou até «limão» ou «limoeiro», ...