Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
436K

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Será possível descrever-me o dialecto estremenho? E dar-me exemplos deste?

Resposta:

Parece haver alguma dificuldade em definir os traços característicos do dialecto estremenho português, até porque não existe a consciência de um falar homogéneo, culturalmente distintivo da Estremadura portuguesa. De acordo com a classificação de Lindley Cintra (pág. 14)1, os dialectos estremenhos fazem parte dos dialectos centro-meridionais, mais especificamente, do subgrupo centro-litoral, que abrange a Estremadura e parte da Beira Litoral, o que significa que apresentam características como:

a) a monotongação generalizada do ditongo [ow] (touro, dou passam a "tôro", "dô");

b) em certas sub-regiões, como a saloia (arredores de Lisboa), a monotongação do ditongo [ej] ("manêra" em vez de maneira), embora este tenha evoluído para [ɐj] no dialecto lisboeta ("manâira");

c) sibilantes pré-dorsodentais, isto é, o /s/ e o /z/ são pronunciados como no padrão europeu e distinguem-se bem do x de baixo e o j de haja — um pouco ao invés do que se verifica nos dialectos setentrionais, onde essas consoantes, na perspectiva dos falantes do padrão europeu ou dos dialectos centro-meridionais, parecem soar quase como "x" e "j", porque são apicoalveolares.

Note-se que o próprio padrão do português europeu constitui uma variedade centro-meridional, baseada nos hábitos linguísticos das classes cultivadas de Lisboa e Coimbra.

1 Ver L. F. Lindley Cintra, "Nova Proposta de Classificação dos Dialectos Galego-Portugueses", Boletim de Filologia, Lisboa, Centro de Estudos Filológicos, 22, 1971, p...

Pergunta:

Os romances derivaram do latim, especialmente, do latim vulgar. Porém, a rigor, eram línguas distintas. Gostaria que comentassem sobre «em que os romances ibéricos são diferentes do latim»?

Resposta:

Já aqui nos temos referido ao percurso histórico que levou do latim, na sua modalidade popular (o chamado latim vulgar) aos romances regionais, e destes às actuais línguas românicas, incluindo as ibéricas. Eis algumas das áreas em que os romances ibéricos, continuando tendências do latim vulgar, se distinguem do latim clássico:

— perda generalizada da flexão casual, mantida apenas nos pronomes pessoais (eu, me, mim, -migo, em português; yo, me, , -migo, em castelhano);

— reestruturação da conjugação verbal, com o aparecimento de formas analíticas em lugar das sintéticas no futuro: AMABO (futuro), «amarei», substituído por AMARE HABEO > amarei (port.), amaré (cast.);

— vozeamento das consoantes oclusivas surdas em posição intervocálica: CAPĔRE > caber (port.), caber (cast.); DATUM > dado (port.), dado (cast.); AQUAM > água (port.), agua (cast.).

Pergunta:

Deparei-me com várias palavras como "para-teatral" e "para-litúrgica".

No entanto, não consegui encontrar a sua definição, compreendi que o facto de acrescentar o "para" altera a palavra seguinte, mas não sei a que nível.

O que significa o "para" antes das palavras?

Resposta:

O elemento para- é um prefixo de origem grega — a preposição pará, «junto; ao lado de; por (com agente da passiva); em, em casa de; durante; para; ao longo de; excepto, salvo; para além de» (Dicionário Houaiss) — , que, em português, modifica semanticamente a palavra a que se associa com os seguintes valores (cf. idem): 1) «proximidade»: parágrafo, parêntese; 2) «oposição»: paradoxo; 3) «para além de»: parapsicologia; 4) «defeito»: paraplegia; 5) «semelhança»: parastilo («órgão floral de aspecto semelhante ao de um pistilo»).

Quanto aos casos em referência, trata-se de adjectivos que se escrevem paralitúrgico (feminino paralitúrgica) e parateatral, sem hífen. Sem contexto, é difícil perceber o que significam estas palavras ao certo, mais a mais que vários significados são atribuíveis ao prefixo para-. Mas, tendo em conta que o prefixo evoca proximidade ou complementaridade em casos como o de paramédico, proponho que paralitúrgico e parateatral se interpretem, respectivamente, como «próximo ou complementar do que é litúrgico» e «próximo ou complementar do que é teatral».

Pergunta:

No contexto sociológico, o conceito de "désaffiliation sociale" de Robert Castel deverá ser traduzido por "desfiliação", ou "desafiliação"? Em tradução inglesa encontrei a expressão "The Roads to Disaffiliation" e em traduções portuguesas e brasileiras predomina a tradução "desfiliação", embora também "desafiliação" seja, por vezes, utilizada por alguns tradutores e autores portugueses. Acredito que ambas as traduções sejam correctas, mas agradeço desde já a vossa preciosa ajuda no esclarecimento de como este conceito deverá/poderá ser escrito na nossa língua.

Resposta:

Filiação é genericamente «ação ou efeito de filiar», e afiliação, «ação ou efeito de afiliar», segundo o Dicionário Houaiss. Trata-se de substantivos deverbais, derivados de filiar e afiliar, respectivamente. Tendo em conta que estes verbos são sinónimos (cf. idem), não se encontra, à partida, diferença semântica relevante entre filiação e afiliação — a não ser a que advém de os substantivos deverbais não terem exactamente o mesmo significado dos verbos donde derivam, precisamente porque a semântica de um substantivo não é a mesma que a de um verbo. O que aqui se diz aplica-se a vocábulos que resultam da modificação prefixal de filiação e afiliação, ou seja, desfiliação e desafiliação. Em suma, estão correctas ambas as traduções apresentadas pelo consulente.

Pergunta:

Na ilha do Faial existe a freguesia da Feteira. Toda a gente escreve Feteira, mas toda a gente diz «Féteira». Está correcta esta pronúncia? Ou a grafia deveria respeitar a maneira como se diz?

Resposta:

No dicionário da Academia das Ciências de Lisboa e no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, o substantivo comum feiteira aparece transcrito como [fɛˈtɐjɾɐ], isto é, com e aberto na primeira sílaba, que é átona. Também o seu sinónimo fetal, terreno onde crescem abundantemente plantas designadas por fetos» (idem), apresenta e aberto na sílaba átona representada por fe-. Tendo em conta que estas palavras aparecem descritas como derivados de feto, «design. comum a todas as pteridófitas da classe das filicópsidas» (Dicionário Houaiss), seria de esperar que, em português europeu, a vogal da sílaba fe- recuasse e se elevasse (isto é, fechasse, como se diz popularmente), soando a vogal como e mudo (o e de de). Mas é possível que nestes casos tenham intervindo outras razões1, conservando os derivados o e aberto da palavra base.

1 Por exemplo, razões históricas. O e átono pode dever a sua abertura ao facto de remontar à crase das vogais de duas sílabas átonas: feeteira > feteira. É o que ocorre de modo semelhante em caveira, que apresenta a aberto átono em resultado da crase de dois aa átonos em hiato: caaveira > caveira. No entanto, esta etimologia não é confirmada nem pelo dicionário da Academia das Ciências de Lisboa nem pelo Dicionário Houaiss. No caso de fetal, pode também ter intervindo uma necessidade distintiva, permitindo o contraste com