Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Compreendo a forma de pronunciar certas palavras, quando as mesmas assumem uma forma com silabas adicionais.

Como exemplo refiro: carro e carroça" (lendo-se cárro e cârroça), ou faca e faqueiro (lendo-se fáca e fâqueiro).

Assim sendo, como explicar o caso de raça e racismo, onde as duas palavras são ditas como "ráça" e "rácismo"?

Há alguma regra que possamos considerar para saber quando se abre ou fecha a vogal?

Obrigado.

Resposta:

Trata-se de uma exceção à regra do vocalismo átono do português europeu.

Os casos de carroça e faqueiro são regulares, porque o a aberto das sílabas tónicas das chamadas "palavras primitivas" – carro e faca – passa a a fechado por se encontrar em sílaba átona (isto é, sem acento de intensidade).

No entanto, por razões históricas há várias exceções à regra, como é o caso de racismo, se junta a outras palavras derivadas com -ismo, que mantêm a vogal aberta da palavra primitiva: fascismo, marxismo.

Cf.Cuidado com as vogais (átonas)! + Vogais átonas abertas

Pergunta:

Algumas ocorrências que encontrei de pronomes oblíquos átonos arcaicos:

«Que estais no céu, santificado... Não no disse eu, menina? Seja o vosso nome…» (Almeida Garrett)

«Ele ou é trova, ou latim muito enrevezado, que eu não no entendo.» (Almeida Garrett)

«Via estar todo o Céu determinado / De fazer de Lisboa nova Roma; / Não no pode estorvar, que destinado / Está doutro Poder que tudo doma.» (Camões)

«O favor com que mais se acende o engenho / Não no dá a pátria, não, que está metida…» (Camões)

«Ora sabei, padre Fr. João, que eu bem no supunha, bem no esperava; mas parecia-me impossível, sempre me parecia impossível que viesse a acontecer.» (Eça de Queirós)

«A culpa de se malograrem estes sublimes intentos quem na tem é a sociedade…» (Camilo Castelo Branco)

«Parentes, amigos, nem visitas nenhumas parecia não nas ter.» (Almeida Garrett)

Há alguma explicação para o uso da consoante n antes dos oblíquos átonos?

Muito obrigado!

Resposta:

No português culto e literário, de tradição oitocentista, os pronomes átonos têm a forma -no/-na depois de formas verbais terminadas em nasal:

(1) Compraram um apartamento e venderam-no logo a seguir.

Acontece que no português mais arcaico as formas -no/-na também podiam ocorrer depois do advérbio de negação não, dada a nasalidade:

(2) Havia muitas cerejas no mercado. mas eu não nas quis comprar. [ou seja, no português escrito padrão: «não as quis comprar»]

Este é um fenómeno que ainda sobreviverá entre alguns falantes mais velhos de Portugal, geralmente pouco escolarizados.

No entanto, é uma sobrevivência curiosa com valor histórico, porque aponta para um fenómeno de assimilação que terá ocorrido em tempos recuados, desde a alta Idade Média, no período galego-português, conforme ilustra o seguinte exemplo (o asterisco marca o seu estatuto hipotético):

(3) *non lo quis > non no quis > não no quis

O esquema acima pretende reconstituir a sequência de advérbio de negação, forma arcaica do pronome o e o verbo. O que aconteceu foi o l de lo, que geralmente desaparecia (síncope) depois de formas verbais acabadas em vogal (quero-*lo» > quero-o), ter sido assimilado pelo som nasal de non (mais tarde, a partir de finais do século XIV, nam e não) e ter passado a articular-se também como n: *non lo > non no.

Trata-se de uma explicação que tem de ser histórica e dialetológica, o que também explica que o uso em questão apareça em Camões e depois mais tarde no século XIX como forma de recriar literariamente a fala popular (casos das citações Almeida Garrett, Camilo Castelo B...

Pergunta:

Estava lendo Marília de Dirceu [de Tomás António Gonzaga] e me deparo com este verso:

«O mesmo, que cercou de muro a Tebas.»

Que eu saiba só tem duas regência o verbo em questão:

1) Cercar algo DE.

2) Cercar-se DE.

Gostaria de saber se a regência do verbo é outra (Cercar A algo DE) ou se Tebas é de gênero feminino.

Resposta:

Não convém tomar como exemplo do funcionamento linguístico atual textos com mais de 200 anos. É o caso do verso em questão.

Como é improvável que Tebas, nome próprio do género feminino, se usasse (ou se use) com artigo definido, no exemplo ocorrerá um objeto direto1 preposicionado, tendo a frase por núcleo o nome próprio em apreço. Esta construção era frequente no século XVII e manteve-se com alguma vitalidade no século XVIII, geralmente envolvendo nomes próprios de pessoa, embora também se documente o seu uso com nomes de países, regiões ou cidades que constituam entidades políticas:

(1) «Em Hespanha o insigne Portuguez Viriato, filho de hum pastor, poz em duvida se Hespanha dominaria a Roma, ou Roma a Hespanha, como confessáraõ os mesmos Romanos.» (Antonio de Sousa de Macedo, Eva e Ave ou Maria Triunfante, 1676, ibidem)

2) «Algumas tropas passaram há pouco tempo para Provença e Delfinado, e muitos discursaram que eram disposições para invadir a Castela no caso daquela morte.» (J. Cunha Brochado, Cartas,1707 in Corpus do Português )

Tanto em (1) como em (2),  Roma e Castela, que, tal como hoje, não se fazem acompanhar de artigo definido («vivia em Roma/Castela»), têm associada a preposição a e desempenham a função de objeto direto das respetivas orações («dominaria a Roma» = «dominaria Roma»; «para invadir a Castela» = «para invadir Castela»).

Sendo assim, no verso em questão, «cercou de muros a Tebas», apresenta-se um objeto direto preposicionado ...

Pergunta:

Tenho encontrado o termo "membrezia" e "membresia" em sites portugueses para definir a pertença a um grupo/ clube.

Qual dos termos é mais aceitável, se é que algum? Li a entrada acerca de "membresia" mas não fazia menção a esta outra grafia...

Obrigada.

Resposta:

Por enquanto, membresia, que já tem registo dicionarístico (cf. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa), é termo para empregar ainda com alguma cautela, pelo menos, em Portugal.

Há 16 anos já se falava desta palavra e do seu uso no Brasil – cf. Dúvidas Linguísticas, na página do FLiP, 04/08/2005). Trata-se de uma clara adaptação do espanhol americano membresía (com a variante membrecía), castelhanização do inglês membership, termo que, em português, continua  a ser geralmente traduzido de formas variadas, de nomes a construções, em função do contexto: adesão, associação, filiação, afiliação, «ser membro/filiado» – cf. Linguee e resposta anterior aqui.

Em todo o caso, querendo adaptar o castelhano, diga-se que quer membresia quer o não atestado membrezia dão corretamente conta da dualidade originária de membresía/membrecía. A primeira forma tem s, tal como na correspondência entre o português casa e o castelhano casa (se bem que a pronúncia do s português e a do s castelhano tenham diferenças apreciáveis); a segunda, apresenta z, alinhando com palavras portuguesas com z intervocálico que são 

Pergunta:

O que significa a palavra mentidero?

Em que sentido posso empregá-la?

Resposta:

Trata-se do castelhanismo mentidero, que significa «lugar onde se reúnem pessoas para conversar» e «grupo humano ou ambiente em que se comentam alguns aspetos da atualidade» (dicionário da Real Academia das Ciências).

Ocorre também sob o aportuguesamento mentideiro  (Infopédia): «1. lugar donde habitualmente se propagam boatos e mentiras; 2. conjunto de pessoas que falam da vida alheia; soalheiro».

A palavra ocorre, portanto, em referência a grupos de pessoas que se dedicam a divulgar e comentar a vida alheia, muitas vezes, como exercício de maledicência.