Pergunta:
Algumas ocorrências que encontrei de pronomes oblíquos átonos arcaicos:
«Que estais no céu, santificado... Não no disse eu, menina? Seja o vosso nome…» (Almeida Garrett)
«Ele ou é trova, ou latim muito enrevezado, que eu não no entendo.» (Almeida Garrett)
«Via estar todo o Céu determinado / De fazer de Lisboa nova Roma; / Não no pode estorvar, que destinado / Está doutro Poder que tudo doma.» (Camões)
«O favor com que mais se acende o engenho / Não no dá a pátria, não, que está metida…» (Camões)
«Ora sabei, padre Fr. João, que eu bem no supunha, bem no esperava; mas parecia-me impossível, sempre me parecia impossível que viesse a acontecer.» (Eça de Queirós)
«A culpa de se malograrem estes sublimes intentos quem na tem é a sociedade…» (Camilo Castelo Branco)
«Parentes, amigos, nem visitas nenhumas parecia não nas ter.» (Almeida Garrett)
Há alguma explicação para o uso da consoante n antes dos oblíquos átonos?
Muito obrigado!
Resposta:
No português culto e literário, de tradição oitocentista, os pronomes átonos têm a forma -no/-na depois de formas verbais terminadas em nasal:
(1) Compraram um apartamento e venderam-no logo a seguir.
Acontece que no português mais arcaico as formas -no/-na também podiam ocorrer depois do advérbio de negação não, dada a nasalidade:
(2) Havia muitas cerejas no mercado. mas eu não nas quis comprar. [ou seja, no português escrito padrão: «não as quis comprar»]
Este é um fenómeno que ainda sobreviverá entre alguns falantes mais velhos de Portugal, geralmente pouco escolarizados.
No entanto, é uma sobrevivência curiosa com valor histórico, porque aponta para um fenómeno de assimilação que terá ocorrido em tempos recuados, desde a alta Idade Média, no período galego-português, conforme ilustra o seguinte exemplo (o asterisco marca o seu estatuto hipotético):
(3) *non lo quis > non no quis > não no quis
O esquema acima pretende reconstituir a sequência de advérbio de negação, forma arcaica do pronome o e o verbo. O que aconteceu foi o l de lo, que geralmente desaparecia (síncope) depois de formas verbais acabadas em vogal (quero-*lo» > quero-o), ter sido assimilado pelo som nasal de non (mais tarde, a partir de finais do século XIV, nam e não) e ter passado a articular-se também como n: *non lo > non no.
Trata-se de uma explicação que tem de ser histórica e dialetológica, o que também explica que o uso em questão apareça em Camões e depois mais tarde no século XIX como forma de recriar literariamente a fala popular (casos das citações Almeida Garrett, Camilo Castelo B...