Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
436K

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A minha questão tem a ver com a utilização do hífen na grafia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990, ou seja, com as regras aplicáveis na vigência do acordo de 1945, ou decorrentes do mesmo ou porque já existiam anteriormente.

Sei que o prefixo semi, escrito com esta grafia só era precedido de hífen se as palavras principiais começassem por h, i, r ou s. E quanto ao prefixo tele?

Com o acordo de 1990, nos últimos dois casos não existe hífen, e o r e o s são dobrados. Mas como era anteriormente? Aplicam-se as regras do prefixo semi? Um texto que não segue o acordo deve escrever, por exemplo "tele-radiestesia" e "tele-receptor"?

Já encontrei vários artigos vossos, mas todos eles se centravam na perspectiva do acordo de 1990. 

Obrigado.

Resposta:

No contexto da anterior norma – o chamado acordo de 1945 –, o prefixo tele agregava-se ao elemento seguinte sem hífen, com duplicação de r e s (telerradigrafia, telessismógrafo) e eventuais supressão de h e elisão vocálica (casos estes que não se documentam nas fontes relativas à referida norma).

Refira-se que, no Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1947, pp. 252/253), de Rebelo Gonçalves, a forma tele- figurava classificada como prefixo que nunca se escreve seguido de hífen, portanto entre os prefixos que se uniam completamente aos elementos imediatos. A mesma fonte acrescentava em nota (ibidem,n. 8):

«Com esta união, ou os elementos posteriores aos prefixos ficam intactos, ou se dão alterações interiores: supressão do h, duplicação do r ou s, etc.

Preveja-se também [...] o caso de um prefixo não aparecer  na forma plena, por terminar em vogal e esta se elidir ante uma vogal do elemento imediato: endartrite [endo- + artrite],etc.»

Atualmente, a escrita de derivados com o prefixo tele- está sujeita à Base XVI, 1, do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Pergunta:

Conquanto não pertença ao paradigma verbal normativo, o particípio presente segue em uso regular na fala e escrita, em neologismos espontâneos, geralmente com final -ante, inclusive com função verbal.

No entanto, para verbos cuja vogal temática é o i, concorrem as possibilidades -iente e -inte. Portanto, qual alternativa seria a mais adequada?:

«Todos os "saintes" devem deixar o crachá à mesa.»

«Todos os "saientes" devem deixar o crachá à mesa.»

«Todos os "salientes" (forma latina) devem deixar o crachá à mesa.»

Quais as regras aplicáveis a essa classe de adjetivos de base verbal da língua portuguesa?

Resposta:

O sufixo  -nte, que é muito produtivo na produção de adjetivos deverbais (derivados de temas verbais), remonta ao sufixo flexional do particípio presente latino. Contudo, a sua ativação frequente, na formação de novos derivados, não é indicativa de que exista um particípio presente em português.

No caso de derivados sufixados por -nte, a possibilidade correta com temas de verbos da 3.ª conjugação (acabada em -ir) é com a terminação -inte ou -ente:

a) ouvi- (ouvir)> ouvinte; pedi- (pedir) > pedinte; sai- (sair) > sainte; segui- (seguir) > seguinte;

b) agi- (agir) > agente; dormi- (dormir) > dormente; referi (referir) > referente; servi- (servir) > servente.1

A terminação -iente só  figura em adjetivos resultantes da adaptação de formas latinas: convenie- (do latim convenire) > conveniente; incipie- (do latim incipere) > incipientesali- (do latim salire) > saliente.

Note-se que as formas acabadas em -iente só se aceitam se foram transpostas do latim clássico diretamente, por via  erudita, para o português. Não é, portanto, aceitável a forma "saiente", que mistura a morfologia do português contemporâneo (sair) com a configuração latina de transmissão culta (-iente).

Por último, em relação às frases apresentada...

Pergunta:

De acordo com artigo de João Veloso, da Universidade do Porto, “The English R coming! The never ending story of Portuguese rhotics” (2015), como parte dum grande processo de mudança na pronúncia dos erres, o erre de palavras como carta, em Portugal, já poderia ser pronunciado como retroflexo.

Para mim, é grande novidade, pois esperava existir tal som somente no português brasileiro. Segundo ele, até há pouco tempo não se documentava essa pronúncia em Portugal, mas alguns estudos recentes e a sua própria observação linguística de jovens escolarizados do Porto demonstram que essa pronúncia cresce a cada dia. «Parece ser mais frequente entre falantes mulheres, jovens e escolarizadas do que entre homens», diz ele.

Que visão tem o Ciberdúvidas a respeito disso?

Resposta:

É uma novidade bastante audível entre os jovens falantes de português de Portugal, em especial os do Norte, se se atender ao estudo do linguista português João Veloso, referido pelo consulente.

O r retroflexo é uma consoante «(...) cuja emissão exige a elevação da ponta da língua em direção à abóbada palatina, provocando um tipo de articulação ápico-pré-palatal; consoante cacuminal, consoante cerebral (p.ex., o chamado r caipira do português do Brasil, ou o r do inglês em red, right)».

Esta articulação ocorre como realização da vibrante simples /ɾ/, que figura em posição intervocálica – cera – e a fechar sílaba – porta, chegar

Está por esclarecer o aparecimento desta pronúncia, não podendo, para já,  atribuir-se nem à influência de certos dialetos brasileiros, nem ao impacto do inglês. Trata-se de um fenómeno detetado por especialistas, mas não pela generalidade dos falantes. Para elaboração desta resposta, não foi possível achar nenhum registo de juízo normativo a respeito desta pronúncia.

Pergunta:

Se, de belo, vem beleza, por que de natural, não vem "naturaleza"?

Qual o real motivo da supressão de duas das letras do meio? Em espanhol, é naturaleza!

Fiz a busca no Google, até pelo site de vocês, mas a resposta não me apareceu!

Obrigado.

Resposta:

A palavra tem a atual configuração por razões históricas.

De acordo com uma nota etimológica do Dicionário Houaiss:

«natura + -eza; contra os substantivos portugueses em -eza (radical adjetival + -eza, tipo beleza, certeza, firmeza, pobreza, riqueza, tristeza etc.), natureza tem formação não canônica, tal como o português naturança "o mesmo que natura ou naturalidade em Mosteiro", segundo Morais Silva, já que não se pode presumir provirem do português naturaleza, nem do verbo naturar, respectivamente.»

No entanto, dado que se atesta documentalmente desde o século XIV quer em textos portugueses quer em textos galegos, poderia supor-se que natureza fosse o resultado de naturaleza (<natural +-eza) por alteração fonética – concretamente, pela queda (síncope) do -l- intervocálico,fenómeno característico da língua até ao século XII: naturaleza > *naturaeza > *natureeza > natureza. A verdade é que não parece haver indícios de que tenha sido assim, razão por que a etimologia indicada pelo Dicionário Houaiss, que é, de resto, a de outras fontes, constitui a proposta mais aceite.

Pergunta:

Na comunidade das ciências naturais, ciências humanas, ciências sociais e noutras áreas do conhecimento humano subsiste a dúvida (e a discussão) sobre se se deve adotar "Antropoceno" ou "Antropocénico" como o vocábulo adequado para designar a nova época geológica e cultural em que teremos entrado em meados do século XX.

O conceito de Antropoceno/Antropocénico é transversal a todas as áreas do conhecimento humano e traduz um tempo a partir do qual a humanidade se tornou uma força telúrica capaz de colocar em causa a sua própria existência, bem como a vida tal como a conhecemos, ao ponto de poder causar a sexta extinção em massa do planeta. Sendo um conceito não apenas geológico, mas também cultural, gostaria de saber a opinião dos linguistas do Ciberdúvidas sobre como devemos apelidar este novo tempo: Antropoceno ou Antropocénico?

Agradeço antecipadamente a vossa resposta e aproveito para felicitar o vosso trabalho, altamente meritório para a língua portuguesa.

Resposta:

Formas relativas a termos usados na periodização geológica, como Miocénico e Pliocénico, estão corretas e, usadas como nomes, são equivalentes, respetivamente, a Mioceno e Plioceno. Infere-se, portanto, que Antropoceno e Antropocénico, que ocorrem no mesmo tipo de periodização, são também ambas formas corretas e sinónimas, como aliás o seu registo em dicionários recentes confirma.

As formas Antropoceno e Antropocénico correspondem a nomes próprios sinónimos que denominam o «período mais recente na história da Terra, em que as atividades humanas começaram a ter um impacto global significativo no clima do planeta e no funcionamento dos seus ecossistemas (nomeadamente desde a década de 1950, altura a partir da qual se verificou um acentuado aumento demográfico e de consumo energético)», conforme a definição do Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa. O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa (VOLP-ACL) igualmente regista os dois termos1. Quer na Infopédia quer no VOLP-ACL, os termos em apreço são classificados como nomes e adjetivos.

Note-se que os termos relativos à periodização da história geológica2 ocorrem como nomes próprios com maiúscula inicial – p. ex. Mioceno, Miocénico –, mas têm minúscula inicial quando usados adjetivalmente – miocénico, mioceno. O mesmo acontece com os vocábulos em questão: Antropoceno e Antropoc...