Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
436K

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Com a vossa ajuda consegui traduzir «Cape Verde: Marketing Good Governance» para «Cabo Verde e a sua mercadologia da boa governação». No entanto, na Internet tropecei num neologismo: "marketando".

Gostaria de saber a vossa opinião.

Obrigado pela atenção e pelo trabalho, de primeira categoria, que fazem. As minhas visitas são quase diárias.

Resposta:

"Marketando" configura um gerúndio que pressupõe "marketar", tendo por base a forma inglesa market, radical de marketing. Fonologicamente, "marketar" não oferece problemas, mas, do ponto de vista ortográfico, é mais adequado escrever esta palavra com qu em lugar de k; daí, marquetar, forma que não encontro registada nem em dicionários nem em prontuários.

Observe-se que, com a introdução do k, do w e do y no alfabeto português, novidade trazida pelo novo acordo ortográfico, as restrições sobre o uso destas letras mantêm-se; são elas (Base I, 2.º):

«As letras k, w e y usam-se nos seguintes casos especiais:

a) Em antropónimos/antropônimos originários de outras línguas e seus deriva­dos: Franklin, frankliniano; Kant, kantismo; Darwin, darwinismo; Wagner, wagneriano; Byron, byroniano; Taylor, taylorista;

b) Em topónimos/topônimos originários de outras línguas e seus derivados: Kwanza, Kuwait, kuwaitiano; Malawi, malawiano;

c) Em siglas, símbolos e mesmo em palavras adotadas como unidades de medida de curso internacional: TWA, KLM; K-potássio (de kalium), W-oeste (West); kg-quilograma, km-quilómetro, kW-kilowatt, yd-jarda (yard); Watt

Por conseguinte, não se enquadrando o neologismo em apreço em nenhum dos casos acima identificados, deverá ele ter uma configuração que exclua k, donde, marquetando.

Pergunta:

Gostaria de saber se há algum estudo sobre progresso/desenvolvimento que possa estabelecer uma relação entre o domínio da língua/idioma e o desenvolvimento do país. Falo isso porque vejo a língua portuguesa ser massacrada dia após dia, não só em favelas ou escolas públicas, mas também em universidades, empresas e no governo. As pessoas não se importam se está certo ou errado — português é complicado e pronto.

Há um conceito geral de que a língua é um entrave ao desenvolvimento de ideias numa conversa, numa explanação, quando na verdade a compreensão devida de vocabulário e técnicas de linguagem facilitam a comunicação, a compreensão de informação, o desenvolvimento de ideias, e isso tem total relação com criatividade, inovação e autonomia — ao meu ver, ingredientes indispensáveis para o progresso de um país.

A educação no Brasil passa por problemas estruturais, fundamentais, e a cada dia mais e mais jovens de formação medíocre são inseridos no mercado de trabalho, graças a uma formação permissiva e vazia.

Escolas públicas não reprovam mais. E faculdades particulares só se interessam pela devida manutenção de caixa. O mercado de trabalho conta com critérios pouco criteriosos de seleção - e seus dirigentes não chegam a ser exemplo de desenvoltura com a língua portuguesa. A única salvação seria o mercado consumidor, que se vende por preço e não por qualidade, então não interessa muito ser da China, dos EUA ou do Brasil, sendo barato é o que importa.

Não há critério – e sem critério não há desenvolvimento.

Vejo a sociedade cada vez mais ignorante, uma total desconsideração com a língua portuguesa, como se ela fosse apenas uma disciplina chata da escola e ninguém consegue relacionar de fato a ligação que existe entre o desenvolvimento de uma nação e o domíni...

Resposta:

Penso que o problema focado pela consulente passa mais pela relação da escolarização com o acesso à cultura e o que hoje se chama cidadania nas sociedades contemporâneas. A crença na dificuldade do português está disseminada nos diferentes países lusófonos, em grande parte, porque há diferenças maiores ou menores, conforme os países, entre a norma-padrão e os dialectos e os sociolectos da maioria da população: acontece que muitas crianças e jovens, tendo ou não por língua materna um dialecto ou um sociolcto português, só em contexto escolar contactam com a norma-padrão; finda a escolaridade obrigatória, muitos ficarão com um conhecimento imperfeito das diferentes dimensões da língua, porque não activam nem desenvolvem competências em contextos (sociais ou mais especificamente laborais) que favoreçam o desenvolvimento pessoal, autonómo e responsável. Sabendo que vivemos em sociedades massificadas, nas quais se consagram direitos que são universais, como a educação, compreende-se que não é fácil conciliar critérios de exigência com critérios de sucesso, quando à partida os que aprendem falam modalidades linguísticas alheias a áreas de actividade e pensamento tradicionalmente veiculadas pela norma-padrão. Na verdade, o domínio da norma-padrão é também a senha de acesso a instâncias mais complexas de intervenção em sociedade.

Dado que estamos a falar da função em sociedade das variedades de uma língua, recomendo Norma e Variação (Lisboa, Editorial Caminho, 2007), da autoria de Esperança Cardeira e Maria Helena Mira Mateus, que, indo de certo modo ao encontro das reflexões da consulente, traçam o seguinte quadro da situação da norma-padrão no Brasil (pág. 40):

«Tardio, débil, o ensino da língua no Brasil não conseguiu ainda colmatar o fosso entre a língua de uma população forjada na escravatura e na miscigenação e a de uma elite escolarizada segundo padrões ...

Pergunta:

Gostaria que respondessem à seguinte pergunta:

Qual a diferença entre que e o/a/os/as qual(ais)?

Tenho estado a investigar no vosso sítio, mas até agora ainda não encontrei a resposta.

Fui igualmente a alguns sítios brasileiros da Internet (porque não encontrei nenhum português) e há dois que dizem que, se que for um pronome relativo, pode sempre ser substituído por qual. Mas há certas frases em que isso me soa terrivelmente mal. P. ex.: «O rapaz "o qual" tinha medo do escuro venceu os seus obstáculos» ou ainda: «Estavas à procura do livro o qual encontrei.»

Também encontrei num desses sítios a seguinte regra: quando uma preposição antecede o pronome relativo, caso [a preposição] possua uma sílaba usa-se que ou quem, caso possua duas ou mais sílabas usa-se qual. Deram os seguintes exemplos: «O homem com quem falei era muito rico» e «O restaurante sobre o qual te falei foi comprado pelo meu irmão.»

Começo a ficar francamente confuso, porque não sei se isto se aplica ao português europeu e se de facto está correcto e se há mais diferenças entre o português europeu e o português brasileiro do que aquelas que são óbvias.

Agradeço desde já a atenção dispensada.

Resposta:

Em português europeu e em português brasileiro,1 a diferença fundamental está no facto de que poder usar-se em orações subordinadas adjetivas relativas restritivas, desempenhando a função de sujeito ou objeto direo, enquanto o qual não ocorre nesse tipo de subordinadas nem como sujeito nem como objeto direto (nos exemplos seguintes, OK indica compatibilidade com o contexto, e *, incompatibilidade):

1 – «O rapaz OK que/*o qual tinha medo do escuro venceu os seus obstáculos.»

2 – «Estavas à procura do livro OK que/*o qual encontrei.»

As frases 1 e 2 tornam-se agramaticais quando o qual é empregado,  como sujeito e objeto direto em orações subordinadas relativas restritivas.2

A respeito da relevância do número de sílabas para a seleção dos pronomes relativos que, quem ou o qual, remeto o consulente para a descrição de Celso Cunha e Lindley Cinta, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, pág. 348):

«[...] [H]á casos em que a língua exige o emprego da forma o qual.

Precisando melhor:

a) o RELATIVO que emprega-se, preferentemente, depois das preposições monossilábicas a, com, de, em e

Pergunta:

Agradecendo de antemão as sempre prestáveis e esclarecedoras respostas, gostaria que me tirassem estas dúvidas relativas às grafias correctas para estas cidades asiáticas:

— "Ramallah" (Territórios Palestinos Ocupados): Será correcto "Ramalá" ou "Ramala"?

— "Sana" (Iémen): Vê-se frequentemente as grafias "Sana'a", "Saná", "Sanaa" e "Sana". Qual a correcta?

— "Manama" (Barém): Parecida com a anterior, existindo as versões "Manama", "Manamá", "Manama'a", e "Manamaa".

— "Doa" (Catar): Vê-se quase exclusivamente a grafia Doha, mas penso que "Doa" estará mais correcto.

— "Timbu" (Butão): É esta a grafia portuguesa para a cidade que em inglês se escreve "Thimphu"?

— "Pnom Pen" (Camboja): Tendo em conta que a pronúncia local aponta para "Pnom Penhe", será legítimo apenas tirar os hh à grafia inglesa Phnom Penh e utilizar "Pnom Pen"?

— "Bandar Seri Begauã" (Brunei): É esta uma grafia legítima? E, já agora, quanto ao país, "Brúnei" ou "Brunei"?

Muito obrigado.

Resposta:

As grafias adiante apresentadas são as disponíveis em:

Rebelo Gonçalves, Vocabulário da Língua Portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 1966 — VLP-RG;

Malaca Casteleiro (coord.), Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Porto Editora — VOLP-PE;

Código de Redacção Interinstitucional da União Europeia — CRI-UE.

Note-se que alguns nomes não têm grafia tipicamente portuguesa generalizada; outros têm-na, mas com escasso uso.

Ramallah (VOLP-PE), Palestina: "Ramalá" ou "Ramala", sendo possíveis, não são formas atestadas.

Saná (VOLP-PE, CRI-UE), Iémen.

Manama (VOLP-PE, CRI-UE), Barém.

Doha (VOLP-PE, CRI-UE), Catar : "Doa", sendo possível, não é forma atestada.

Timbu (VLP-RG, VOLP-PE, CRI-UE), Butão. 

Phnom Penh (VOLP-PE) e Pnom Pen (CRI-UE), Camboja: a forma Pnom Pen conforma-se mais com os padrões gr...

Pergunta:

Neste contexto, qual é a forma mais correcta?

«Eu já pedi autorização ao Ministério, a resposta foi não, mas a situação ainda se pode inverter ou reverter.»

Resposta:

Inverter significa «passar à direcção oposta», enquanto reverter é «retroceder, regressar». Tendo isto em conta, obtemos duas frases, de sentidos ligeiramente diferentes:

a) «Eu já pedi autorização ao Ministério, a resposta foi não, mas a situação ainda se pode inverter.» (= «ainda pode ir na direcção contrária», por exemplo, a resposta pode ser sim)

b) «Eu já pedi autorização ao Ministério, a resposta foi não, mas a situação ainda se pode reverter.» ( = «ainda pode voltar atrás», por exemplo, a resposta pode não ser não)

Assinalo, contudo, que as frases são praticamente sinónimas, dado que inverter, marcando direcção oposta, pode abranger também o movimento de retrocesso a um ponto inicial, ou seja, o movimento marcado por reverter.