Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Sou galego, e a minha língua materna é o português na sua variante galega. Na Galiza, às vezes, usamos palavras castelhanas, como por exemplo pijo, o que em inglês seria snob; não consegui encontrar em nenhum dicionário como se diz esta palavra em português da Galiza nem em português de Portugal!

Poderiam ajudar-me?

Muito obrigado.

Resposta:

Penso que o castelhano pijo tem por equivalente beto ou betinho, em português europeu.

No Grande Dicionário da Língua Portuguesa (GDLP), da Porto Editora, regista-se beto como coloquialismo que significa «jovem bem-comportado, geralmente um pouco presumido», o que parece indicar que o termo designa mais um tipo psicológico do que um tipo social. No entanto, Afonso Praça, no seu Novo Dicionário do Calão (Lisboa, Casa das Letras, 3.ª edição, 2005), vai um pouco mais longe e define beto como um tipo social:

«Rapaz muito certinho, pelo menos na aparência, e oriundo de boas famílias. De um modo geral, é conservador, de direita, não falta às aulas, cumpre as suas obrigações escolares, é respeitador, não faz noitadas e gosta de vestir roupas de boas marcas.»

Ocorrências da palavra em corpos textuais confirmam um uso referente a estatuto social, como acontece na seguinte passagem (entrevista a Daniel Sampaio publicada no jornal Público de 22/05/1994), extraída dos corpos textuais disponíveis na Linguateca (ACDC):

«P. – "Betos" é uma designação de comportamento, ou é uma designação de classe?
R. – É as duas coisas. O comportamento dos betos está relacionado com uma classe social. São das classes sociais mais altas e têm determinados comportamentos característicos, preocupam-se com festas, com aparecerem em revistas, com a maneira de vestir...»

Assinale-se que, nesta definição, não se sublinha o bom comportamento assinalado pelo GDLP e por Afonso Praça. De qualquer modo, de acordo com a minha experiência de fala...

Pergunta:

Gostaria de saber onde posso encontrar o léxico galego admitido há pouco no léxico português, se for possível uma listagem exaustiva; também gostaria de saber dalgum dicionário escrito na norma nova e que inclua o léxico galego.

Poderiam dar-me uns quantos exemplos?

Muito obrigado.

Resposta:

O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Porto Editora, inclui vocábulos galegos, sem identificação de proveniência. Quanto a dicionários portugueses que apliquem o novo acordo ortográfico, noto que nos impressos  – conheço o Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, os novos dicionários da Texto Editora – não há registo de galeguismos; no entanto, no Dicionário da Língua Portuguesa Priberam (em linha), acolhem-se palavras galegas (caso de lôstrego, «relâmpago», e brêtema, «nevoeiro»). Mas existir uma lista separada desse vocabulário publicada em Portugal, não existe; é na Galiza que ela está disponível, com o título Léxico da Galiza para ser integrado no Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa, ao que parece, numa edição da Academia Galega da Língua Portuguesa.

Cf. Porque é que o Galego é tão idêntico ao Português?

Pergunta:

Qual a influência do latim eclesiástico na formação de palavras vernáculas?

Resposta:

A influência da Igreja na Idade Média permitiu que muitos termos do latim eclesiástico fossem adoptados pela língua medieval, muitas vezes eximindo as palavras assim introduzidas dos processos fonológicos que alteravam a maioria dos itens lexicais provenientes do latim vulgar. Sobre este assunto, cito Paul Teyssier (História da Língua Portuguesa, Lisboa, Edições Sá da Costa, 1982, pág. 20):

«As palavras eruditas ou semieruditas que ascendem àquela época distante [a da formação do galego-português] pertencem ao vocabulário religioso. Podem ser detectadas pelo facto de não terem sofrido certas transformações fonéticas normais no vocabulário do "património hereditário". Assim, cabidoo ("capítulo", no sentido eclesiástico), hoje cabido, que aparece no testamento de Afonso II (1214), representa o latim capĭtulus, empréstimo posterior à data em que todos os ĭ latinos se pronunciavam [e] (pois que ele conserva este i latino), mas anterior à queda do l intervocálico (uma vez que perdeu este fonema). É à mesma camada de termos religiosos que pertence (epĭscŏpus), pela conservação do seu i, assim como culpa e cruz (lat. cŭlpa, crŭcem), pela permanência do seu u. Foi também a Igreja, não resta dúvida, que impôs, em data muito antiga, a terminologia cristã dos dias da semana: domingo, segunda-feira, terça-feira

Pergunta:

Venho por este meio pedir o vosso auxílio para a resolução de um problema que muito tem suscitado a minha reflexão. A verdadeira inquietação que lhe subjaz é de natureza ética e antropológica, no seu sentido mais abrangente, mas a base que permitirá constituí-lo como objecto de reflexão e análise ulterior é, manifestamente, filológica. Trata-se do seguinte: quão antigo é o uso do calão foder como expressão corrente para designar «fazer mal»? Qual a origem histórica e linguística dessa associação? Qual o contexto da sua criação e difusão? Terá sido importada? Qual o vestígio literário mais remoto a atestar o seu uso em português?

Ciente de que a resposta não será, porventura, fácil, agradeço desde já o seu esclarecimento.

Resposta:

Não consigo datar essa acepção da palavra. Por um lado, o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, apenas acolhe a significação de «ter relações com mulher», atestada na Idade Média (séculos XII e XIV)1. Por outro lado, em corpos textuais, torna-se difícil realizar estudos diacrónicos da semântica de palavras obscenas sem soluções de continuidade, visto muitas vezes os textos recolhidos pertencerem a géneros e registos que não admitiam tais vocábulos (a excepção seria a poesia satírica medieval).

Por exemplo, as ocorrências de foder no Corpus de Português, de Mark Davies e Michael Ferreira, provêm todas de textos do século XX e já evidenciam os dois significados, «copular» e «prejudicar». Anote-se que o particípio passado fodido se especializou como adjectivo, designando «que ou o que está perdido, sem saída» e «que ou aquele que está em péssima situação financeira; arruinado» (cf. Dicionário Houaiss; a nota etimológica não dá conta do desenvolvimento destas acepções).

De qualquer modo, o uso do verbo foder na acepção de «prejudicar» encontra paralelos noutras línguas.  Lembremos-nos do inglês, língua em que fuck, embora não pareça ter carga obscena tão forte como a do termo equivalente português, significa, além de «copular», «estragar», «prejudicar». Em castelhano, é curioso verificar que joder, verbo cognato de foder, concorre com o verbo follar, ambos aplicáveis tanto a «copular» como a «prejudicar», «estragar» (cf. dicionário da Real Academia Espanhola). Trata-se provavelment...

Pergunta:

Em textos científicos castelhanos, que se debruçam sobre aspectos da vegetação natural, encontra-se recentemente a utilização do neologismo castelhano temporihigrófilo. Com este adjectivo qualificam-se as comunidades vegetais que se encontram espacialmente entre as comunidades higrófilas (sempre húmidas e frequentemente inundadas) e mesófilas (relativamente mais secas). O termo tenta expressar a noção de preferência por locais que estão húmidos apenas temporariamente (ou que são inundados apenas raramente).

Seria desejável um neologismo paralelo em português, pelo que solicito a vossa ajuda para a sua correcta construção, preferencialmente já à luz do Novo Acordo Ortográfico: "tempori-higrófilo", "tempor-higrófilo"?

Mais uma vez parabéns pelo vosso extraordinário trabalho.

Resposta:

O termo levanta algumas dificuldades, porque é um composto erudito híbrido (ou hibridismo) que contém o radical de origem latina tempor-, que é pouco ou nada frequente nesse tipo de palavras, que não são hifenizadas. A solução seria propor uma forma como "temporigófilo": higrófilo teria também de perder o h inicial, visto não existir h no interior de palavra gráfica em português (a não ser que ocorram os dígrafos ch, lh e nh), tal como acontece com outros elementos que se escrevem com h inicial: electroidráulico (Dicionário Houaiss) < electro- + hidráulico.1

1 O consulente Paulo Araújo (Rio de Janeiro, Brasil) propõe a forma "higrovário":

«A respeito da consulta [...], "Um termo para locais temporariamente húmidos", seria aceitável inverter a formação do adjetivo procurado e criar "higrovário"? O significado «levemente regado, molhado só na superfície; variado», dado pelo Houaiss para o elemento de composição vari-, parece ficar bem próximo, por extensão ou analogia, do que se pretende formar à semelhança do termo em espanhol.»

Agradeço a sugestão, que não me parece impossível. Mas a sua legitimação pode ser posta em causa, pelo facto de o Dicionário Houaiss registar vari- como antepositivo — em "higrovário", apareceria como pospositivo — e por, nos dicionários consultados,