Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A propósito do misterioso objecto que tem, nos últimos dias, aparecido e desaparecido nos EUA reparei na grafia monólito, que me era até aqui desconhecida, uma vez que sempre disse/escrevi "monolito" — sem a tónica na segunda sílaba e sem acento agudo.

Pergunto se esta norma será recente já que trabalhos académicos que encontrei, em português europeu, usam da grafia "monolito". E, pela mesma lógica, escrevemos "monografia" e não "monógrafia" ou, se quisermos, "monocelha" e não "monócelha". "Megafone", e não "megáfone", etc etc.

Uma pedra/pedra única, mono + lito, "monolito".

O que me está a escapar?

 

 O consulente adota a ortografia de 1945.

Resposta:

A forma que é considerada correta - pelo menos, desde 1940 (cf. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa) é monólito.

O elemento de composição -lito, à semelhança de sufixos como -ico (cínico, democrático, sulfúrico, turístico, ), tem associado um acento que, curiosamente, recai externamente, isto é, sempre na última sílaba da forma precedente, isto é, o primeiro elemento do composto ou da base da derivação – cf. salvífico (e não "salvifico"); micrólito (e não "microlito").

Não é isto que acontece com os outros casos mencionados na pergunta, porque -grafia, -celha e -fone retêm o seu próprio acento.

Pergunta:

A propósito de problemas surgidos na cidade de Guimarães nos ajuntamentos ilegais que assinalavam as tradicionais Festas Nicolinas, surgiu esta curiosidade:

1) A formação do adjetivo nicolino; e

2) A razão de um "santo" bem mais popular noutras paragens ( Rússia, Turquia, Grécia e Noruega) se ter transformado no "patrono" dos estudantes... de Guimarães.

Os meus agradecimentos.

Resposta:

1) O adjetivo nicolino tem como base de derivação a forma nicol-, que integra o nome próprio Nicolau.

2) O culto a São Nicolau parece limitar-se à cidade de Guimarães, no que se configura como uma tradição urbana, ao que parece pouco ligada às tradições rurais das outras freguesias do respetivo concelho. Com efeito, lê-se em As Festas Nicolinas, em Guimarães: tempo, solenidade e riso (coord. Jean-Yves Durand, Município de Guimarães, 2018, p. 7):

«[...] [A] notoriedade das celebrações que Guimarães dedica todos os anos a São Nicolau é muito reduzida fora do concelho e, até a uma época recente, nas freguesias rurais mais afastadas da cidade, evocar as «Nicolinas» nem sempre suscitava grandes reações. Antes da sua popularização a partir do início do século XX, as Festas Nicolinas parecem ter sido conhecidas sobretudo como «Festas de São Nicolau» ou «Festejos Escolásticos a São Nicolau». A designação hoje corrente foi adotada a partir do uso da expressão «a festa nicolina» no Pregão de 1904, escrito por João de Meira, uma figura intelectual da cidade no início do século XX, e ofusca agora por inteiro as outras denominações, as quais podem ainda surgir ocasionalmente em contextos formais ou eruditos, como é o caso de «Festejos a São Nicolau».»

Segundo a mesma fonte (p. 41 e ss.) o culto será relativamente tardio, por comparação com outros da região:

«[...] [O] culto deste bispo oriental só se consolidou no Ocidente após a transferência das suas relíquias para Bari, em 1087. Prova disto constitui o Censual de D. Pedro, bispo de Braga, que não regista qualquer mosteiro ou igreja consagrada a São Nicolau, o que evidencia o desconhecimento deste santo no noroeste peninsular. Segundo Francisco ...

Pergunta:

No artigo "Reduções de palavras que não são abreviaturas" de 26-11-2020, João Nogueira da Costa afirma o seguinte :

«O adjetivo belo tem a forma reduzida bel que se usa unicamente com o vocábulo prazer: «fazer algo a seu bel-prazer.»

A minha pergunta é : por que é a palavra belver (ou "bel-ver"?) não é considerada uma forma reduzida como bel-prazer? .

Muito obrigada pela atenção

Resposta:

O uso de bel, forma apocopada de belo, é raríssimo, de tal maneira que se pode dizer que hoje só se atesta pelo composto bel-prazer (ver, por exemplo, o Dicionário Priberam).

A palavra belver poderá ser posta em paralelo com bel-prazer e até escrever-se com ortografia semelhante ("bel-ver", não atestada). Contudo, acontece que tem uma história e um tratamento dicionarístico diferentes, seguindo outro caminho de representação ortográfica. Com efeito, a forma belver constitui uma «forma apocopada de belvedere, com a intenção de aportuguesar o italianismo», segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa., que também consigna belveder como variante do aportuguesamento.

Noutras fontes, é possível ainda identificar as expressões «bel talante» (cf. Dicionário Infopédia) e «bel cantar» (cf. dicionário de Caldas Aulete). Quanto a bel canto, o seu registo é feito geralmente em itálico, visto ser identificado como italianismo.

Acrescente-se que bel-prazer não ocorre em geral como nome autónomo, mas antes como parte da locução «a meu/teu/seu/nosso/vosso bel-prazer», que significa «segundo o (seu) próprio arbítrio».

Pergunta:

Junto breve citação extraída do romance Terras do Demo, pp. 180-181, em que consta putreia:

«Ia para quatro meses que não sabia dela… é verdade. Por modos já não havia escrivães no povo! Terra de maldição! Os que aprenderam a rabiscar o nome navegavam, e o padre — esse sujaria as mãos se lhe pedissem duas regrinhas de graça. Ah! Deus tivesse na santa glória o tio Manuel Abade que não precisava que o rogassem duas vezes para escrever a um vagamundo. A malta do Rio, pelo que lhe dissera o Jaime Gaudêncio, ficava toda boa. Boa, mas o Rio já não era o Rio. O italiano e o espanhol tinham derrancado o trabalho. Depois, passagens caras e más. Viera no Malange, um mazombo de paquete que andava à tona como tubarão escaldado como abóbora. À passagem da linha, estivera a deitar a cama das tripas com o afocinhar do calhambeque. Perdesse o nome que tinha se aceitava mais algum dia viajar no francês! Uma putreia, comida para negros, beliches para condenados do Inferno. Boa Mala Real, mas para melhor o alemão. O alemão, batia a tudo o que andava no mar.» Terras do Demo, pp. 180-181

Contudo em Quando os Lobos UivamCasa do Escorpião já se lê como potreia.

Já agora, esta pequena dúvida: «comida para negros». Pretos é regionalismo para po...

Resposta:

Encontra-se registo das duas formas – potreia e putreia – com significados diferentes, ainda que próximos, marcando uma apreciação negativa, conforme se regista no dicionário de Caldas Aulete:

«putreia – s. f. || podridão. || O que não presta: Os aviamentos do Calhorra iam em crescendo, o que supunha maior consumo de metal verdadeiro para colorir a putreia. ( Aquilino Ribeiro, Volfrâmio, c. 5, p. 162, 4.ª ed.) [É melhor forma que potreia.] F. r. lat. Putredo (putrefação).»

«potreias. f. || (pop.) bebida desagradável, mal saborosa; especialmente vinho estragado, adulterado. || (P. ext.) Coisa ruim. Cf. putreia. F. lat. Putridus.»

Estas palavras e as suas definições são reiteradas por Elviro Rocha Gomes, Glossário Sucinto para melhor compreensão de Aquilino Ribeiro, Porto Editora, 1959):

«Putreia – mixórdia, restos de decomposição de substância orgânica.»

«Potreia — bebida estragada e de mau gosto, porcaria.»

Mais recentemente, só a forma potreia encontra entrada em dicionários tanto de Portugal como do Brasil, que consignam também a variante pótrea; e a respetiva informação etimológica indica sobre...

Pergunta:

Referir-se à pessoa que nasce no Brasil como brasileiro ou brasileira me parece um equívoco. Na verdade, remete a um tratamento pejorativo e que foi nacionalmente incorporado.

O termo tem origem na forma que o antigo português tratava seu patrício ao retornar a Portugal, vindo do Brasil. Na língua portuguesa, as palavras com sufixo -eiro ou -eira designam atividade laboral. São os casos de pedreiro, costureira, marceneiro, torneiro, e por aí vai.

Consultando dicionários, encontrei como principais gentílicos, brasiliano e brasílico. Há outros. As pessoas de língua inglesa tentam nos ajudar nos chamando de Brasilian. Os de língua espanhola também. Nos chamam de brasileños.

Vendo alguns gentílicos nacionais, vejo que na Bahia há maleiro, que é pejorativo. No Piauí há piauizeiro, que também é pejorativo. Ambos com sufixo -eiro.

Acredito que está na hora de nos recompormos e mudarmos a forma com que nos chamamos.

Grato.

Resposta:

Agradece-se ao consulente a partilha da sua opinião, a qual parece ter pouco que acrescentar.

Se os Brasileiros não gostam do gentílico que herdaram e que é o usado mesmo oficialmente, a mudança poderá ser feita pela intensificação do emprego das formas alternativas mencionadas.

Note-se, porém, que no caso de brasileiro, o sufixo -eiro não é atualmente considerado depreciativo, nem tem de o ser, porque – e o próprio consulente assinala o facto – também ocorre em nomes relativos a funções ou atividades como madeireiro, mineiro, merceeiro, carteiro, enfermeiro ou banqueiro.

Além disso, brasileiro está amparado por outros gentílicos usados no Brasil como campineiro, «natural de Campinas», ou mineiro, «natural de Minas Gerais» (cf. Dicionário Houaiss).

Por outras palavras, a forma -eiro tem, em português, muitos sentidos (é polissémico), e a ela associam-se diferentes valorizações, razão por que poderá afigurar-se empobrecedor julgar a forma brasileiro apenas por uma das interpretações atribuíveis ao seu sufixo.