Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Como consequência da ocupação árabe no nosso território herdámos vários elementos que ainda são visíveis na cultura portuguesa actualmente, como por exemplo as palavras Algarve e Alfama.

Ambas começam pelas letras "A" e "L", portanto a minha dúvida é se todas as palavras que começam por "AL" têm origem árabe, como por exemplo a palavra almofada?

Obrigado.

Resposta:

Os três casos mencionados são efetivamente de origem árabe. No entanto, nem todos os nomes comuns e próprios começados por al têm essa origem. Por exemplo, não têm origem árabe1:

– Alberto, que tem origem germânica, por via do francês (de Adalberht <adal, «nobre» + berht, «brilhante célebre»);

– albergue – com os derivados Albergaria (topónimo) e albergaria (nome comum) – do gótico *haribairg(o) 'acampamento, alojamento'albergue;

– Alva (rio), talvez de uma forma latina *alvea, «cavidade, leito de rio», se não for pré-romano;

alçapão, – ver aqui;

  alga, do latim alga, «alga, sargaço»;

– alpendre, de origem obscura, mas relacionável com o verbo pender, do latim pend, «ser suspendido, estar suspenso».

Quanto aos arabismos, recorde-se que Algarve tem origem na expressão al-gharb, «o ocidente» (isto é, a parte ocidental da parte árabo-muçulmano da Península Ibérica medieval), na qual al constitui o artigo definido. Alfama é a adaptação de outra expressão, al-hammâ «as termas, fontede água quente», em que o h se converteu em f na sua adoção pelos falantes de língua românica no território atualmente português. Finalmente, almofada é também outro arabismo que faz parte do léxico comum e que vem do árabe al-muhaddâ, «coxim, travesseiro».

 

1 Foram consultados o Dicio...

Pergunta:

Como se pronuncia o termo imitatio em latim?

Obrigado.

Resposta:

Na pronúncia restaurada, pronuncia-se "imitátio". Nas pronúncias eclesiástica e tradicional, diz-se "imitácio".

Refira-se que o latim imitatĭo, imitationis, que significa «ação de imitar, imitação, cópia, traslado», está na origem de imitação, vocábulo português que tem as suas primeiras ocorrências na primeira metade do século XVI (cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Importa também referir que imitatatio se relaciona com imago, imaginis, ou seja, «imagem», através do verbo imĭtor, aris, atus sum, ari «procurar reproduzir a imagem, imitar, arremedar, modelar-se por, copiar, trasladar, assemelhar-se a; contrafazer, simular, fingir, falsificar» (idem, ibidem).

Pergunta:

Gostaria de conhecer as origens do apelido Cristino.

Agradeço.

Resposta:

É um apelido com origem no nome próprio Cristino, que deriva de Christinus, de Christus (= Cristo), tal como Christina > Cristina1.

Nas páginas do GeneAll, encontram-se ocorrências de Cristino como apelido e como nome próprio.

 

1 Cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa.

Pergunta:

Gostava de saber se em português se utiliza o advérbio abondo como em galego? Têm o mesmo valor ou é considerado um regionalismo?

Às vezes sou vítima das interferências linguísticas ao serem línguas tão próximas.

Obrigada!

Resposta:

Em português também se regista abondo como advérbio, com variantes: avondo, abonde e avonde (ainda que os dicionários mais recentes só apresentem as formas com v).

Comparando o uso galego – cf. dicionário da Real Academia Galega –, pode afirmar-se que o significado é muito semelhante: «com fartura; abundantemente» (cf. Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa). A palavra aparece frequentemente na locução «ter abondo» ou «haver abondo» (ou «ter/haver avondo»). No Sul, isto é, no Algarve e Baixo Alentejo, a expressão tem vitalidade, e é corrente assumir a forma «ter avonde».

Não é, portanto, um vocábulo da norma ou do padrão culto do português de Portugal, mas ocorre no discurso informal. Quanto ao Brasil, pelo menos, o Dicionário Houaiss (s.v. abonde) faculta registo.

Pergunta:

O hífen era comum nas expressões hei-de, hás-de, etc. etc. Com o Acordo Ortográfico [de 1990], passamos a hei de, hás de. Até aqui é claríssimo.

Havia também casos mais complexos com dois hífenes no mesmo conjunto como hei-de-lhe, hás-de-me, etc. Imagino que as formas gráficas corretas passam a ser hei de lhe, hás de me.

Ou teria alguma sensatez, cair o primeiro hífen e não o segundo, e passarmos a grafar "hei de-lhe," "hás de-me"?

Grato.

Resposta:

Está correta afirmação feita pelo consulente, segundo a qual se inseria hífen entre a forma auxiliar hei-de e o pronome pessoal átono que eventualmente ocorresse depois:

(1) «hei-de-lhe dizer» (exemplo de Rebelo Gonçalves, Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, 1947, p. 239)

Com a supressão do hífen na forma auxiliar, que passou a hei de com o acordo ortográfico de 1990, é lógico – como bem se observa na pergunta – que o mesmo sinal se suprima também antes do pronome pessoal, tal como se faz com «ter de»:

(2) «hei de lhe dizer», «hás de me dizer (cf. «tenho de lhe dizer», «tens de me dizer»).

O mesmo se aplica às formas hás-de-lhe, há-de-lhe e hão-de-lhe, que passaram, respetivamente, a hás de lhe, há de lhe e hão de lhe1.

Note-se, porém, que não se encontra este caso mencionado textualmente no acordo ortográfico em vigor.

 

P.S. (17/09/2020): O que se expõe é relativo a umas das possibilidades de colocação dos pronomes pessoais átonos em construções verbais em que entra o auxiliar haver de. A outra opção é a de o pronome figurar depois do verbo principal (ênclise): hei/hás/há/hão de dizer-lhe.

 

1 O mesmo acontece com qualquer outro pronome pessoal átono: hás-de-me/te/nos