Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Certa vez, Napoleão Mendes de Almeida, creio eu que no seu Dicionário de Questões Vernáculas, disse, do seu jeito prescritivista, que deveríamos ter bem clara a distinção entre «tenho que» e «tenho de». Segundo ele, frases como «ela afirmou que eu tinha que tomar mais cuidado» seriam mais bem formadas com o uso de «tenho de», ou seja, de forma correta escreveríamos e diríamos: «ela afirmou que eu tinha de tomar mais cuidado».

«Ter que» seria usado no sentido aqui discutido: «tenho mais que fazer».

Contudo, é fato que no Brasil quase todos dizem «tenho que fazer X» e, no caso de «tenho mais que fazer», — é o que me parece — dizem «tenho mais o que fazer».

No primeiro caso, acabamos, por coincidência ou não, convergindo no uso com o espanhol, idioma em que se diz «tengo que».

No entanto, no segundo, acabamos por criar algo próprio, ou seja, em vez de manter o «tenho mais que fazer», pusemos um o antes do que. (“Criando” porque me parece mais natural que a novidade seja nossa, já que em tanto no português europeu quanto no espanhol há a mesma forma, e a divergente é a construção brasileira.)

A pergunta é: como é que houve essa inovação no Brasil? Conseguem dar hipóteses? Terá sido uma questão fonética?

Resposta:

Sobre a história dos juízos normativos à volta de «ter que», com valor modal, poderá consultar a resposta "Ter de vs. ter que".

Quanto a «ter mais o que fazer», que tradicionalmente não é aceite1, as fontes consultadas para elaboração desta resposta são omissas quanto à sua origem2.

No entanto, não é de excluir que a génese da construção em apreço se deva à analogia com orações interrogativas indiretas em que o pronome interrogativo que pode ser substituído por o que:

(1) Não sei mais que fazer.

(2) Não sei mais o que fazer.

Em (2), observa-se que é possível ocorrer o que ocorra em lugar de que interrogativo.

Sugere-se aqui, portanto, que «ter mais o que fazer», em vez de «ter mais que fazer», seja resultado da transposição da relação entre (1) e (2), levando a permutar que com «o que». Na origem da construção brasileira, estarão, portanto, factores de interpretação sintática e semântica.

 

1 Maria Helena de Moura Neves, no Guia de Uso do Português (São Paulo, Editora UNESP, 2003, p. 745), observa o seguinte: «Considera-se tradicionalmente que é injustificável o uso de um pronome demonstrativo o após o

Pergunta:

O termo “Euromaidan”, em rigor, significa “europraça”. Assim se chama porque no fim de 2013 surgiram protestos antigoverno e pró-União Europeia, e eles tiveram como centro a praça da Independência, na capital do país. Ou seja, sendo os protestos pró-União Europeia e centrados numa praça, a palavra “Euromaidan” surgiu, e passou a ser amplamente usada pela mídia.

Após algum tempo, a palavra passou a representar não somente a praça, mas também o movimento inteiro que levou à derrubada do governo naquela época. Na mídia e na escrita acadêmica anglófona, não se fala dos protestos da Ucrânia em si, mas sim do (movimento da) “Euromaidan”. A Real Academia Española, atenta à movimentação, adaptou a grafia ao castelhano: “Euromaidán”. Ela passou a ser usada na hispanosfera normalmente.

A meu ver, a forma natural de se traduzir o termo para o português seria grafando-o como “Euromaidã”. Entretanto, ninguém da mídia portuguesa nem da mídia brasileira o fez. Não encontrei um texto na Internet que o empregasse.

Pergunto:

1. Uma palavra nova aportuguesada só entra nos dicionários caso seja utilizada pelas pessoas? Como isso se define? Qual é o critério?

2. Caso alguém a utilize num texto acadêmico sem que ela esteja registrada num dicionário, poderá esse uso ser criticado?

Resposta:

Por enquanto, não existe um sistema de transliteração do alfabeto cirílico para o alfabeto português que seja aceite universalmente entre falantes de língua portuguesa. Há várias propostas – entre elas, a da Folha de S. Paulo1 –, e até se emprega a norma internacional ISO 92.

Mesmo assim, embora a adaptação proposta pelo consulente seja possível, em princípio, ainda não encontra ela a força necessária para se consagrar, porque o nome que representa não tem tradição ou grande circulação no português oral e escrito. É verdade que, com final, em lugar de -an, se regista Astracã e que o elemento -stan tem o aportuguesamento (i)stão: Cazaquistão, Usbequistão.  Contudo, trata-se de formas que, por razões históricas, foram sendo alteradas por um uso mais frequente ou mais presente em certas práticas discursivas, como sejam, as do jornalismo, as das relações diplomáticas e as da divulgação historiográfica.

Respondendo às perguntas:

– Um aportuguesamento pode ser criado de propósito, de forma planeada, para um registo dicionarístico, mas é corrente este concretizar-se já depois da criação de tal forma, muitas vezes sem se poder atribuir a falantes identificados.

– Quanto a escrever "Euromaidã", trata-se de forma possível, de acordo com o modelo de Amã, adaptação da rom...

Pergunta:

Gostaria de saber se a expressão «cair a cabeça aos pés a», que, segundo as minhas pesquisas, apenas se encontra dicionarizada no dicionário da Porto Editora, pode também expressar a ideia de entusiasmo, isto é, sendo o significado da expressão «ficar estupefacto», gostaria de saber se tal estupefacção pode também transmitir a ideia de estar entusiasmado, empolgado, animado.

Grato pela atenção

Resposta:

A expressão que refere encontra-se registado no Dicionário Infopédia da LínguaPortuguesa (da Porto Editora), com o sentido de «ficar estupefacto» e parece variante da expressão «cair o coração aos pés», que significa «ser desagradavelmente surpreendido» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa), «sentir um grande desapontamento» (Dicionário Infopédia). Existe também ainda outra variante, mas provavelmente mais antiga do que a que o consulente apresenta: «cair a alma aos pés».

Quer «cair o coração aos pés» quer «cair a alma aos pés» têm sentido disfórico, isto é, significam «sentir um profundo abalo causado por um golpe inesperado; ter um grande susto ou surpresa» (António Nogueira Santos, Português – Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas). No que foi possível apurar, observa-se, portanto, que os registos da expressão lhe atribuem um sentido negativo, e não positivo. Contudo, não é impossível que, por extensão semântica, a expressão tenha acabado por significar o contrário, mantendo a sugestão de uma emoção repentina. Mesmo assim, uma pesquisa da Internet ou a consulta de corpora textuais (por exemplo, o Corpus do Português, de Mark Davies) não facultam atestações claras deste último caso.

Pergunta:

Gostaria de saber um termo vernáculo para office boy? Sei só de contínuo, que já se usou bastante no Brasil mas hoje já não se usa.

Por que via esse estrangeirismo veio para o Brasil? Ele antecede o uso de contínuo?

Resposta:

O anglicismo office boy – também se escreve office-boy, com hífen1 –, que literalmente significa «rapaz de escritório»2, tem registo em vários dicionários e guias de uso elaborados tanto no Brasil como em Portugal. Note-se, porém, que o Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa assinala este uso como característico do Brasil; e, na verdade, em Portugal, não sendo desconhecido (ver também o Dicionário Priberam), parecem mais correntes termos como paquete, estafeta ou moço de recados.

Sobre a introdução e difusão deste anglicismo no português, nada consta nas fontes consultadas, mas é de supor que se tenha tornado corrente na segunda metade do século XX, pelo menos, no português do Brasil. Em alternativa a office boy, o termo registado em dicionários brasileiros é efetivamente contínuo ou simplesmente empregado – cf. Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa e Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Também se constata que se diz apenas boy (cf. Dicionário Houaiss).

Observe-se, por último, que, em Portugal, contínuo se usou até há bem pouco tempo como substantivo designativo de um funcionário que, em ambiente escolar, intervém nas áreas da organização, higiene, limpeza e vigilância (Dicionário Priberam); hoje aplica-se o termo «assistente operacional» aos indivíduos que dese...

Pergunta:

Usa-se na minha região (Cabeceiras de Basto) o termo "curgidades" para referir as novas culturas da horta (alface, pepino, cebola, pimentos, tomates, ...).

Não encontro a palavra no dicionário, nem uma origem/derivação que justifique de forma clara o seu uso.

Solicito e agradeço, desde já, a sua opinião.

 

Resposta:

A palavra em dúvida é uma alteração de curiosidade na linguagem popular de Portugal.

Os dicionários e estudos de regionalismos grafam variantes – "crugidade", "crujidade", "curgidade", "curjidade" –, às quais atribuem o sentido de «cuidado, diligência». Também registam a expressão «filho da crujidade», isto é, criança que nasceu de um encontro sexual ocasional1.

Para esta  resposta, não foi possível achar fontes que esclarecessem de que maneira se passou dos significados mencionados para os que aponta o consulente. Contudo, atendendo a que "curjidade" significa «cuidado, diligência», afigura-se plausível que em certos meios e comunidades a palavra também tenha aludido ao eventual exotismo de algumas culturas ou aos cuidados requeridos por elas. Sendo assim, é possível que os produtos hortícolas em apreço tenham passado a ser conhecidos pela curiosidade que eram ou pelos cuidados que exigiam2. Trata-se de mera hipótese, como se disse.

1 Consultaram-se a Revista Lusitana (1887-1943) e Língua Charra: Regionalismos de Trás-os-Montes e Alto Douro (2013), de A. M. Pires Cabral.

2 Este tipo de alargamento semântico ter-se-á operado por metonímia, isto é, pela substituição da designação habitual de uma realidade por outra relativa a um aspeto físico ou psicológico geralmente associado.