Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A gramática Amini Boainain Hauy, no livro Da necessidade de uma gramática-padrão da língua portuguesa (1983), diz que «os verbos que contêm passividade , como levar, sofrer e receber consideram-se neutros: Ele levou uma surra. Ele sofreu uma punição» (pág. 181).

Nas frases abaixo :

A) A ambulância levou Marcos.

B) Marcos foi levado pela ambulância.

A frase A está na voz ativa e a frase B na voz neutra?

Grato pela resposta .

Resposta:

O termo verbo neutro não parece ter grande difusão na descrição gramatical mais recente, especializada ou não, pelo menos a avaliar pela sua ausência em algumas gramáticas publicadas nos últimos 40 anos1. No entanto, foi usado por Napoleão Mendes de Almeida (1911-1998), que na sua Gramática Metódica da Língua Portuguesa (13.ª edição, 1961, p. 190), o define assim (manteve-se a grafia original):

«Verbo neutro: [...] há casos em que o sujeito não pratica nem recebe a ação expressa pelo verbo, por não indicar êste ação alguma. Assim, quando dizemos: "O cozinheiro é bom" – o sujeito cozinheiro não pratica nem recebe nenhuma ação. Indicamos, assim falando, um estado (ou conseqüência de uma ação) , e o sujeito, com tais verbos, não é nem agente nem paciente.

Outros verbos neutros : estar, ficar, permanecer.

Nota – Os verbos neutros são os mesmos verbos de ligação; chamam-se de ligação enquanto considerados quanto à predicação [e] chamam- se neutros enquanto considerados quanto à voz.»

À luz desta definição, parece, portanto, que sofrer e receber não são verbos de ligação, e levar tampouco o é em nenhuma das situações em questão, a saber, «levar uma surra», «a ambulância levou Marcos» e «Marcos foi levado pela ambulância». Sendo assim, também não serão verbos neutros.

Não obstante, a linguista basileira Amini Boainain Hauy, como bem assinala o consulente, refere a possibilidade de classificar os verbos levar, sofrer e receber como verbos neutros. Mas é de notar que essa observação está enquadrada pela crítica da...

Pergunta:

Já vi muitas frases construídas com a expressão «é de um/uma», mas tenho dúvidas se é correto o seu uso.

Aqui mostro dois exemplos:

I – «O uso de meios ilícitos para obtenção de vantagens é de uma imoralidade imensa.»

II – «A falta de cuidados no tratamento às pessoas e aos animais doentes é de uma desumanidade sem tamanho.»

O uso da referida expressão encontra respaldo nos livros de língua portuguesa?

Grato.

Resposta:

O uso em questão está correto.

O artigo indefinido ocorre correntemente a preceder um nome («uma imoralidade/desumanidade») numa frase exclamativa, eventualmente com um adjetivo («imensa«) ou uma locução equivalente («sem tamanho») que denotem uma característica excecional. Trata-se de uma construção de intensificação referida por Celso Cunha e Lindley Cintra, na sua Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições Sá da Costa, 1984, p. 240;mantiveram-se a ortografia e os sublinhados originais):

«O artigo indefinido aparece com acentuado valor intensivo em certas frases da linguagem coloquial caracterizadas por uma entoação particular:

Ela é de uma candura!...

Tens umas ideias!...

A suspensão final da voz faz subentender um adjectivo denotador de qualidade ou defeito de carácter excepcional. Equivale a dizer-se:

Ela é de uma candura admirável (ou comovente).

Tens umas ideias estapafúrdias (ou óptimas). [...]»

Pergunta:

Gostaria de ver esclarecida uma dúvida sobre o uso de "não-sei-quê".

Foi-me dito que se deve escrever com hífenes, porque é assim que está no dicionário. Consultei o dicionário e, efetivamente, é assim que lá está.

Contudo, está classificado como substantivo, pelo que eu pergunto se, num contexto como o da frase «ele disse que gostaria de estudar turismo, para poder viajar e não(-)sei(-)quê», "não(-)sei(-)quê" é um substantivo?

Muito vos agradeço pelo serviço que prestam à língua portuguesa.

Resposta:

No caso apresentado, «e não sei quê» não é um nome, mas uma locução ou um marcador discursivo, que se escreve sem hífenes e se usa frequentemente no português europeu como forma de aludir a informação que não se sabe com exatidão ou que não interessa reproduzir, mencionar ou enumerar. Sendo assim, é correto escrever «não sei quê» na frase em questão: «ele disse que gostaria de estudar turismo, para poder viajar e não sei quê» (= «... viajar e outras coisas que não não se sabe ou não interessa referir»).

Como nome, no sentido de «coisa indefinida, incerta ou duvidosa», a grafia não é consensual. Escreve-se não-sei-quê, hifenizado, no Vocabulário Ortográfico da Porto Editora (cf. Infopédia); e, embora não conste do Vocabulário Ortográfico Comum da Lìngua Portuguesa (Instituto Internacional da Língua Portuguesa), o registo que aqui se faz do nome não-sei-que-diga deixa supor que a locução em apreço também será hifenizada. Aliás, regista-se não-sei-quê em dicionários atualizados e elaborados em Portugal (Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa; ver também o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).

Contudo, o 

Pergunta:

Existe em Setúbal um antigo bairro com a denominação de "Tróino". Dado que tenho visto o termo grafado umas vezes como "Tróino" e outras como "Troino" agradeço informação sobre a grafia correcta.

Obrigado.

Resposta:

Escreve-se Troino, pelo menos, de acordo com a norma vigente.

Antes de 2015, é possível que se escrevesse "Tróino", para indicar a abertura do ditongo, tal como se verifica na pronúncia, mas, mesmo nessa época, a grafia com acento não era consensual. Com efeito, Troino era já a forma que José Pedro Machado (1914-2005) registava na edição de 2003 do seu Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, antes, portanto, da entrada em vigor do acordo ortográfico vigente.Também no Guia de Portugal, coordenado por Raul Proença e publicado em 1924 (reedição da Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 662), a grafia empregada não apresenta acento gráfico: «Estamos em pleno bairro do Troino, habitado por pescadores (praia de banhos).»

Segundo ainda José Pedro Machado (op. cit.), é obscura a etimologia de Troino – «o Troino», ainda que na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira se sugira uma relação com Troia, topónimo que designa a península integrante do tramo final da margem sul do estuário do Sado.

Pergunta:

Como se diz o plural de dorminhoco? Abre-se o o, ou não?

Obrigada

Resposta:

No plural, recomenda-se a pronúncia com o fechado, tendo em conta o exemplo de barroco/barrocos: dorminh[ô]cos.1

No entanto, há oscilações na pronúncia da terminação -oco e das variações no plural e no feminino – passaroco, com "ô", mas pipoca, com "ó" –, o que explica de algum modo que haja dicionários que registam o plural de dorminhocos com o "ó" aberto (p. ex., o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa e o Diconário Priberam). Por outras palavras, na prática, a forma com o aberto tónico não é um erro, e aceitam-se as duas maneiras de pronunciar dorminhocos.

Quanto ao feminino, a situação é semelhante à do plural. Pode manter-se o fechado na sílaba tónica – dorminh[ô]ca –, como acontece com o feminino de barroco, que é barr[ô]ca («arte barr[ô]ca", e não «arte barr[ó]ca"). No entanto, há dicionários (p. ex., o já referido dicionário da Academia de Ciências de Lisboa) que aceitam o feminino com o aberto": dorminh[ó]ca2.

 

1 O Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), Rebelo Gonçalves associa a dorminhocos a indicação de um o fechado tónico.

2 Para as formas do género feminino, Rebelo Gonçalves (op. cit.) regista as duas pronúncias, com o fechado e o