Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Considerando que o termo religião (religio) traduz um conceito, parece-me gramaticalmente erróneo utiliza-lo no plural ("religiões").

Não será assim ?

Resposta:

Do ponto de vista estritamente linguístico, considera-se:

– por um lado, a religião como fenómeno do comportamento humano, e, neste caso, emprega-se o nome comum religião no singular;

– por outro. como sistema organizado de crenças, muitas vezes associado a um aparelho institucional complexo (p. ex. a Igreja Católica, o Islão), e, nesta ótica, pode usar-se a palavra também no plural – religiões: «as religiões do Livro», «a história das religiões».

Pergunta:

Na sequência da implementação do Acordo Ortográfico, gostaria de saber como devem ser classificados os nomes referentes aos meses e estações do ano em contexto escolar. Uma vez que se escrevem com minúscula, nomes comuns?

Já li explicações que referem que devem continuar a considerar-se nomes próprios. Neste caso, como o explicar a miúdos do 1.°, 2.° e, até, 3.° ciclos?

Pessoalmente, passei a evitar a classificação destes nomes, mas recentemente tive de ajudar o meu filho a resolver um exercício e deparei-me com este problema. Ele frequenta o 3. ° ano e o exercício enviado apresentava a ortografia anterior à implementação do AO, ou seja, estes nomes surgiam com maiúscula, o que me levou a uma explicação acrescida, tendo optado pela classificação de nomes comuns.

Aguardo o vosso precioso parecer.

Resposta:

A questão levantada é a mesma que já poderia formular-se antes da aplicação do Acordo Ortográfico perante os nomes dos dias da semana, que não eram classificados como nomes próprios e não conheceram tratamento especial em contexto escolar.

Não é consensual o estatuto onomástico dos nomes do calendário – os nomes cronológicos ou cronónimos –, como se aponta na Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2003, p. 1008), obra que, apesar disso, os inclui entre os nomes próprios. Mas deve observar-se que, muito antes, já Gonçalves Viana (1840-1914), no seu Vocabulário Ortográfico (1914, p. 32), que preceituava a maiúscula inicial nos nomes dos meses quando este figurassem em datas, escrevia, por exemplo, abril (idem, p. 44), não evitando a inferência de aos nomes dos meses abrir-se a possibilidade de se grafarem com minúsculas iniciais noutros contextos.

O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de 1940, da Academia das Ciências de Lisboa, registava os nomes dos meses quer na secção que lista o vocabulário comum quer na secção do vocabulário onomástico, observando que abril, fevereiro ou junho se escreviam com minúsculas iniciais e eram nomes comuns quando «não indicam propriamente uma data». Esta classificação desaparece mais tarde em 1966, quando Rebelo Gonçalves (1907-1982) publicou o seu

Pergunta:

Em recente entrevista ao diretor da Polícia Judiciária, tropecei com esta palavra da área do cibercrime (formada do anglicismo hacker, pirata informático», em português): "hacktivismo».

Transcrevo a frase: «Ainda recentemente detivemos um jovem, da área do hacktivismo, que atacou inúmeras estruturas do Estado e multinacionais. Temos feito um conjunto de trabalhos em que estão em causa valores importantes da própria democracia, do Estado, que se fazem e não se publicitam, face aos interesses em causa. Por vezes, a prevenção de certos tipos de criminalidade obriga a remetermo-nos ao silêncio, deixando que a Justiça atue nos seus tempos. Nós somos uma polícia pequena, mas que tem de ser uma polícia com excelência. (...)»

A minha dúvida: é aceitável um neologismo destes?

Muito obrigado.

Resposta:

Do ponto de vista estritamente normativo, a resposta mais previsível é considerar a forma "hacktivismo" um neologismo inaceitável. Acontece, porém, que o vocábulo em causa denomina uma nova realidade, a da pirataria informática posta ao serviço de certas causas políticas, o que pode constituir razão suficiente para uma avaliação mais demorada.

Trata-se do aportuguesamento de um empréstimo proveniente do inglês, a amálgama hacktivism1, também escrita hactivism, resultado da junção de hack, «acutilar; aceder  ilegalmente» (ou da truncação de hacker, «pirata informático; ciberpirata; pirata eletrónico»)2, e activism, o mesmo que «ativismo, militância». É, portanto, um item lexical que ocorre em português muito provavelmente devido ao facto de este novo tipo de intervenção política, de protesto, ter sido identificado num universo de utilização da língua inglesa como idioma franco da informática, levando assim a cunhar e a projetar a denominação. Como é de calcular, no contexto das línguas românicas, o português não está isolado na adoção do termo: para o espanhol, a Fundéu BBVA menciona hacktivismo no artigo que dedicou em 2017 a hacker; e o dicionário de italiano Treccani atesta desde 2012 o termo hacktivista, que legitima nessa língua a forma hacktivismo.

Quanto à introduçã...

Pergunta:

«Informação é caminho para empoderar o paciente», li há dias num jornal digital brasileiro. Gostava de saber como se formou este "palavrão" ora tão usado no chamado "economês".

Muito obrigado.

Resposta:

O aportuguesamento de empowerment já com conta com cerca duas décadas de uso, pelo menos, tendo em conta o registo do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, de 2001 (ver Textos relacionados, nesta página, à direita). A palavra, que significa genericamente «obtenção, aumento ou fortalecimento de poder»1, é uma adaptação correta, pois segue o mesmo modelo que possibilita a derivação de apoderamento ou apoderação com base no radical apodera-, do verbo apoderar (cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Este verbo forma-se, por sua vez, por adjunção simultânea (parassíntese) de a- e -ar: a- + poder- + -ar; e o mesmo sucede com empoderar, ainda que a génese tenha motivação no inglês to empower: em- + poder- + -ar.

O verbo empoderar, que, como se viu, está bem formado, legitima, portanto, a formação do vocábulo empoderamento, o qual, se há alguns anos era um neologismo considerado com reservas, hoje é aceitável, ocorrendo não só no "economês", e não como mero elemento da gíria usada entre economistas, mas também na linguagem especializada das ciências sociais.

Mesmo assim, querendo o verbo e o nome em apreço substituídos por palavras com maior tradição no português ou menos vinculadas a anglicismos de vária ordem, quem pesquise, por exemplo, nas páginas de tradução do

Pergunta:

Sobre a pandemia da covid-19 e alguma informação não confirmada pelos especialistas, tenho lido e ouvido – nomeadamente nas conferências de imprensa diária da Direção-Geral da Saúde – a expressão «evidência científica» ou «evidência clinica». Por exemplo:

«Segundo a Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed), a Organização Mundial da Saúde promoveu um ensaio clínico para alcançar evidência científica sobre algumas das opções de tratamento e cuja implementação reúne maior consenso junto da comunidade médica e grupos científicos especializado.»

«A diretora-geral da Saúde afirmou (...) que não há evidência científica de que as desinfeções de vias e espaços públicos sejam eficazes contra o contágio pelo novo coronavírus.»

Não se tratará este modismo um decalque do inglês evidence («There is no scientific evidence to suggest that underwater births are dangerous»)?

Em português sempre se disse e escreveu prova (ou «comprovação»)... cientifica – e nos mais variados domínios. Por exemplo:

«7 provas científicas de que o aquecimento global existe»

«A Prova Científica da Existência de Deus», etc., etc.

Tenho ou não razão?

Muito obrigado.

Resposta:

Do ponto de vista das tradições e padrões de uso do português culto, não se recomendam o uso de evidência como sinónimo de prova, nem a substituição deste por aquele, como, aliás, se confirma pelos exemplos facultados pelo consulente. Trata-se de um anglicismo semântico; ou seja, a (enganadora) semelhança da palavra portuguesa com a inglesa evidence, que, entre vários significados, abrange os de «prova» e «demonstração», pode ter motivado  essa extensão semântica de evidência, por exemplo, em traduções menos cuidadas.

Numa perspetiva comparativa, sem deixar de ser prescritiva, é de assinalar que este caso de empréstimo semântico do inglês replica o que já se verificou noutras duas línguas românicas, por exemplo em espanhol e francês. Com efeito, a Fundéu-BBVA desaconselha o emprego genérico do espanhol evidencia, no sentido de «prueba» («prova») num parecer de 16/06/2015. Também em francês se não aprova o uso anglicizante de évidence, como preuve («prova»), conforme a recomendação da Banque de Dépannage Linguistique do Office Québécois de la Langue Française.

Mas, voltando ao caso português, nota-se que evidência, num sentido próximo do de «prova», aparecerá em A Relíquia, de Eça de Queirós (1845-1900):

(1) «Duvidava eu? Queria uma evidência? Que fosse nessa noite, tarde, depois da uma hora, bater à portinha da Adélia!» (Eça de ...