Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Estou à procura da origem específica da palavra cachaça.

Pelo que consegui achar até agora, entendo que este nome foi dado à bebida pelos escravos africanos no Brasil.

Há uma chance grande de ter origem em uma língua banta. Infelizmente é muito difícil descobrir mais.O fato de que existem várias línguas bantas não me ajuda.

Um professor brasileiro [...] acha que a palavra vem do quicongo. Mas ele não dá nenhuma referência, nem menciona a palavra original.

Eu procurei no dicionário português-quimbundu, mas não consegui aqui achar nenhuma palavra parecida, a não ser um destilado de cana-de-açúcar que se chama kisungu em quimbundu.

Gostaria muito conhecer a origem específica da palavra cachaça (qual língua, qual palavra, qual significado original).

Se puderem ajudar-me com isto, ficaria muito obrigado e feliz.

Obrigado.

Resposta:

Faltam elementos para uma resposta conclusiva, mas a palavra pode não ter origem banta.

Com efeito, há quem sugira que cachaça tem origem portuguesa, ou melhor, ibero-romance. Desta proposta etimológica dá conta o Dicionário Houaiss na nota etimológica associada à entrada deste vocábulo:

«origem controversa; segundo José Pedro Machado [Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa], derivado de cacho 'conjunto, agrupamento de flores ou frutos', este do lat. capulus, 'punhado, empunhadura', ligado ao espanhol cacha, que [Joan] Corominas prefere relacionar ao latim vulgar *cappula, ambos cognatos de capere, [...]; [o etimólogo Antenor] Nascentes observa que, em Portugal, cachaça significou 'vinho de borras' e, por extensão, no Brasil, aplicou-se o nome à 'aguardente feita de borras de melaço', o que afastaria qualquer étimo africano e dificultaria interpretá-lo como feminino de cachaço 'parte gorda e grossa do pescoço do porco'; há quem vincule o vocábulo à cognação[1] do verbo latino coquere 'cozer, cozinhar, amadurecer, digerir, madurar (no sentido físico e moral)', [...]; outros o ligam a cacho 'cabeça, pescoço, inflorescência, ajuntamento de flores ou frutos, punhado de cabelo', cuja origem seria o latim vulgar cacculus, alteração do latim clássico cac(c)abus, i 'tacho, caldeira, caldeirão', por extensão da forma, 'cabeça, parte posterior e arredondada do pescoço'; daí, o registro da 1.ª doc. do voc. no ...

Pergunta:

Donde surgiu "mó": de mor (maior) ou muito? Por exemplo, «ela é mó linda».

Li em algum sítio de português que isso veio de muito, mas eu discordo.

É normal ouvir também «ele é o maior babaca», então me parece que vem de maior, e não de muito, como dizem alguns.

Resposta:

Sobre o uso popular brasileiro da forma como advérbio, em construções adjetivais de grau, portanto, equivalendo a muito – «mó linda» (= «muito linda») –, é provável que provenha de maior ou da sua variante arcaica mor. Contudo, trata-se de uma forma a respeito da qual faltam comentários e registos fidedignos que permitam reconstruir o aparecimento do seu uso. Sendo assim, mais útil se afigura apenas registar por enquanto as hipóteses sobre a sua génese, em lugar de declarar que só uma é verdadeira.

Se a relação com muito é duvidosa1, parece bastante popular2 e muito plausível do ponto de vista fonético a ideia de que a forma adverbial tem origem em mor, variante de maior, que se conserva em compostos como capela-mor ou altar-mor. Com efeito, dada a tendência de vários dialetos brasileiros para a queda do -r final (apócope), a passagem de mor a ficaria assim explicada. Por outro lado, como mor tem valor de comparação e grau, não se torna impossível a sua gramaticalização como advérbio de quantidade, como pode deixar supor a seguinte sequência de exemplos, todos retirados de registos orais ou oralizantes reunidos no Corpus do Português, de Mark Davies:

(1) «Eu d[ou] a mó força.»

(2) «Primeiro é aquele monte de despedida, mó festa.»;

(3) «[...] tenho mó vontade de abrir o jogo [...].

(4) «A Kim tem mó corpo lindo [...].»

(5) «[...] fiquei mó feliz [...].»

Os exemplos 1 a 5 apontam para vários usos de que poderão desenhar uma multifuncionalidade a que se associa...

Pergunta:

Gostava de saber se o adjectivo elegível tem o significado de «qualificado». Por exemplo: «os trabalhadores elegíveis podem receber um subsídio de 100 euros.»

Perguntei a vários portugueses e eles responderam que sim, equivalente à expressão «que reúnam os requisitos». Contudo, não consegui encontrar este significado («qualificado») nos dicionários portugueses.

Obrigado.

Resposta:

O adjetivo elegível significa genericamente «que pode ser eleito». No entanto, mais recentemente, provavelmente por influência do inglês elegible, significa também «que pode ser selecionado» (cf. Dicionário Infopédia). Refira-se que a página de tradução Linguee regista qualificado como tradução menos corrente do inglês elegible.Aceita-se, portanto, uma expressão como «os trabalhadores elegíveis», mas é preciso reconhecer que este é um uso que decalca de algum modo o inglês, sem deixar de fazer alusão ao eleitoralismo político, que é talvez a noção mais corrente associada a elegível.

Em lugar de elegível poderão empregar-se fórmulas menos sintéticas, é certo, mas de cunho menos anglicista, como «os trabalhadores mais qualificados» ou «os trabalhores que reúnam os requisitos».

Pergunta:

Alfredo Gomes, Júlio Nogueira, Luiz A. P. Victoria, entre outros gramáticos, consideram as seguintes expressões como galicismos sintáticos:«fazer dinheiro» (no sentido de «realizar, de conseguir dinheiro»); «fazer erros»(por «cometer erros»); «fazer música» ( por «compor música») ;«fazer passeio» (por passear ou «empreender um passeio»).

Gostaria de sabe se essas expressões já são aprovadas pela gramática normativa, já que são usadas com frequência, inclusive por grandes escritores contemporâneos.

Grato pela resposta.

Resposta:

A resposta depende de cada caso e um pouco da definição e identificação dos usos corretos na história mais recente da língua portuguesa nos diferentes países em que ela é língua materna, administrativa e literária. Observe-se, também, que a censura às construções em questão parece dever-se sobretudo à suposição de ocorrerem como simples decalques de construções estrangeiras, geralmente de origem francesa ou inglesa. Todavia não é certo que todas as quatro locuções sejam resultado direto de tal influência.

Assim:

1 Fazer dinheiro

É bastante discutível condenar hoje o uso de «fazer  dinheiro», porque esta expressão tem registo, por exemplo, num dicionário elaborado em Portugal, o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, que a Academia das Ciências de Lisboa publicou em 2001. Mesmo que, do ponto de vista normativo, se tenham levantado reservas às opções deste dicionário, importa salientar que «fazer dinheiro» já figura em obras de autores literários do século XIX ou de começos do seguinte, como abonam os seguintes exemplos:

(1) «O velho Soares é uma máquina de fazer dinheiro; vive no escritório» [José de Alencar (1829-1877), Sonhos d'Ouro (1872), in Corpus do Português, de Mark Davies)

(2) «(...) é ne...

Pergunta:

Vejo com frequência as locuções «face a» e «frente a» em textos da mídia e até em textos acadêmicos , inclusive de alunos de letras.

Sei também que [Celso] Luft, no Dicionário de Regência Nominal abona essa expressão assim como «frente a».

Gostaria de saber se o uso de «face a» e «frente a» já está liberado em textos formais?

Grato pela resposta e parabéns pelo belo serviço de vocês.

Resposta:

Ambas as locuções prepositivas são hoje aceitáveis do ponto de vista normativo.

É verdade que o gramático brasileiro Napoleão Mendes de Almeida1 (1911-1998) as condenava como erros graves. Contudo, Maria Helena de Moura Neves, no seu Guia de Uso do Português (2003), apesar  de referir que «as lições tradicionais não recomendam a expressão "face a" ("em face de, ante")», observa que «ela é de uso corrente, e não apenas na linguagem popular». Sobre «frente a» no sentido «em face de, ante, perante», a mesma autora assinala que é expressão vista como castelhanismo por puristas, mas tem emprego corrente.

Acrescente-se que, em dicionários recentes elaborados em Portugal, as locuções «face a» e «frente a» têm registo desigual. No dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, estão consignadas como subentradas, respetivamente, de face e frente; mas não figuram nem no Dicionário Infopédia nem no Dicionário Priberam2.

Em conclusão, apesar das reservas, não é incorreto o uso de «face a» e de «frente». Mesmo assim, para quem leve a peito essas reservas, existe como alternativa a locução em face de, que não tem tido censura normativa, ou as preposições ante e perante.

P.S. — Os nossos agradecimentos pelas palavras gentis do consulente.

 

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