Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Cada vez mais oiço na rádio e na televisão as mais diversas pessoas – jornalistas, comentadores, políticos, até médicos – dizerem "circuíto", "intuíto" e "fortuíto". Pelo andar da carrruagem, o muito vai passar a "muíto" – sabido, como se sabe, como é o rolo compressor da televisão na propagação do erro!...

Pergunto: a que se deve esta onda arrasadora da prolação tradicional do ditongo ui?

Muito obrigado.

Resposta:

As palavras circuito, intuito e fortuito, a que se junta gratuito, têm todas ditongo decrescente ui, ou seja, têm o mesmo ditongo que se produz e ouve no nome próprio Rui ou no nome comum cuidado.

A pronúncia criticada e criticável consiste em articular o referido par vocálico como ditongo crescente1, como se ouve nos casos de ruído, aluimento ou possuir.

Por que razão ocorre esta alteração? Talvez haja alguma interferência (por analogia) da terminação -ito, forma que ocorre como sufixo de diferentes origens e a marcar diferentes valores, em que o i é núcleo de silaba tónica: conflito, meteorito, arenito. Mencione-se também um caso semelhante, o do nome comum e adjetivo fluido (com ditongo decrescente, como em fui), frequentemente confundido com o particípio passado fluído, do verbo fluir (com ditongo crescente, como em suíno): também dando prioridade  a "uí", não raro se ouve «os "fluídos"» em lugar de «os fluidos».

Em todo o caso, não se julgue que a pronúncia em causa constitui novidade no mundo de língua portuguesa. Há dela registo no Brasil, desde há algumas décadas, como atesta um comentário que Napoleão Mendes de Almeida (1911-1998) dedicou a circuito no Dicionário de Questões Vernáculas (São Paulo, Livraria Ciência e Tecnologia, 1994, 2.ª edição rev...

Pergunta:

Usa-se a expressão «atento o parecer», quando alguém se pretende referir a um parecer que é ponderado ou tomado em consideração no sustento de uma decisão.

Em que género fica o verbo atentar quando o substantivo é feminino? Por exemplo, com informação, ficaria «atento a informação» ou «atenta a informação»?

Resposta:

Tendo em conta que atento significa «levado em consideração; visto, ponderado» (cf. Dicionário Houaiss) e é usado adjetivalmente, deve fazer-se a concordância em género: «atenta a informação».

A fórmula em questão tem a configuração de uma construção participial, comportando-se atento como o particípio passado atendido. Na verdade, seria até de esperar que a fórmula integrasse esta última forma: «Atendido o parecer», «atendida a informação». Contudo, a presença de atento neste caso deve-se ao facto de o verbo atender já ter tido (ou ainda ter) duplo particípio passado: por um lado, a forma regular atendido, e, por outro, a forma irregular atento. Esta possibilidade era mencionada por Vasco Botelho de Amaral, no seu Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (1958); contudo, atualmente, atento já não figura como forma da conjugação de atender, pelo menos, a avaliar pela sua ausência de dicionários em linha (cf. Dicionário Infopédia e Dicionário Priberam).

Falando ainda de fórmulas, registe-se a inclusão de atento como adjetivo na sequência «atento, venerador e obrigado», a qual já foi muito mais frequente no fecho de cartas (cf. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa).<...

<i>Hostel</i> e o seu plural
Sobre o aportuguesamento de um anglicismo

Durante a crise pandémica da primavera de  2020 em Portugal, o anglicismo hostel foi palavra recorrente na comunicação social por causa da deteção de infetados entre as pessoas confinadas em alguns alojamentos desse tipo. Como faz o aportuguesamento desta palavra? O apontamento a seguir apresentado procura avaliar a sua adaptação ao português, deixando recomendações sobre o seu uso.

Pergunta:

Preciso de encontrar um termo na língua portuguesa que sintetize a ideia de «partilha de casa» e, já que corresidente se apresenta como uma palavra correta, poderia considerar o conceito de "corresidência"?

Encontro esta palavra em estudos de origem brasileira, mas não nos dicionários ou estudos portugueses.

Em caso negativo, que outros se afigurariam mais adequados?

Resposta:

As palavras corresidente e corresidência são possíveis e corretas.

A primeira, corresidente, já tem registo em dicionário, no Dicionário Priberam, com o sentido de «(referido à pessoa) que reside com outrem» e está comentada numa resposta do arquivo do Ciberdúvidas. Observa-se ainda que corresidente surge esporadicamente em listas de resultados de uma pesquisa Google, incluindo ligações para textos científicos com origem em Portugal.

Quanto a corresidência, é este o nome que corresponde a corresidente – tal como residência se relaciona com residente –, mas trata-se de vocábulo que figura ainda muito pouco em resultados de pesquisa na Internet. Pelo adjetivo mencionado, depreende-se que corresidência significa «situação de quem habita com outra pessoa».

De qualquer maneira, sublinhe-se que o facto de estes termos ocorrerem no português do Brasil não é impeditivo de serem usados em Portugal, a não ser que neste último país já sejam correntes termos alternativos, o que, aliás, não se confirma nas fontes consultadas para elaboraçao desta  resposta. O que é possível apurar é que, genericamente, do ponto de vista linguístico, não recai censura nem desaprovação normativas sobre

Pergunta:

O prefixo vice-, por sua origem, tem mais que ver com substituição ou com inferiorização?

Obrigado.

Resposta:

Do ponto de vista etimológico, o prefixo vice- marca a noção de substituição, porque remonta ao ablativo latino vice, que significava «em vez de», de acordo com Joan Coromines e José Pascual, no Diccionario Crítico Etimológico Castellano e Hispánico:

«Vice-, prefijo formado con el lat. vĭce, ablativo, ‘que hace veces de’» [= Vice-, prefixo formado com o latim vĭce, ablativo, "que faz as vezes de"»]

A noção hierárquica de «abaixo de» será posterior, conforme o comentário da nota etimológica do Dicionário Houaiss à entrada vice-:

«do latim viceablativo de um substantivo feminino vix "vez, sucessão, alternativa", só empregado em dois outros casos do singular: acusativogenitivo (vicem e vicis), apresentando, no plural, todos os casos, à exceção do genitivo; o ablativo vice, que figurava a princípio em locuções adverbiais (vice versa, mutŭa vice), tornou-se depois, no baixo-latim, um verdadeiro prefixo: vicequaestor, vicequaestura e vicepraefectus; na composição em vernáculo, vice- é atestado desde o século XIV (com as formas bis- e biz-), ocorrendo ainda viz- e viso-; em geral, com a ace...