Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tanto quanto sei, os nomes próprios de autores ou escritores estrangeiros não são traduzidos, no entanto existe pelo menos uma notável excepção: Jules Verne, que em português é conhecido como "Júlio" Verne.

Gostaria de saber se existe alguma regra definida relativamente a esta matéria e se há outras excepções para além da que mencionei.

Resposta:

Trata-se de um preceito hoje esquecido.

Até meados do século XX, podia acontecer que alguns autores estrangeiros fossem conhecidos por uma versão do seu nome próprio (ou primeiro nome) em português, um pouco como acontece ainda com os nomes dos monarcas estrangeiros e dos seus herdeiros1. Tal é o caso de Júlio Verne, que acabou por se fixar assim mesmo e mantém atualidade. Também se dizia e escrevia Carlos Baudelaire, Gustavo Flaubert e, já no domínio da filosofia, Carlos Marx2; estas adaptações já não ocorrem hoje em dia, substituídas que foram pelas formas inteiramente estrangeiras: Charles Baudelaire, Gustave Flaubert e Karl Marx.

Registem-se a propósito as considerações de Vasco Botelho de Amaral (1912-1980), no seu Grande Dicionário das Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (1958; mantém-se a ortografia original):

«Uma prática errónea do português actual é a que mantém os nomes de baptismo na sua feição estrangeira ou estrangeirada. Ora o nosso idioma exige que se traduzam tais nomes e que o apelido ou sobrenome fique na forma estranha. Desta maneira, escrever-se-á: Alfredo de Musset, Henrique Heine, Guilherme Shakespeare, etc [em vez de Alfred de Musset,

Pergunta:

Na ilha das Flores, dos Açores, existe um lugar chamado "Quada" (ou "Cuada", ou "Coada"?) pertencente à freguesia da Fajã Grande, dessa ilha.

Qual será a grafia correcta, "Cuada", "Quada", ou "Coada", e qual poderá ser, em vossa opinião, a origem de tão estranha palavra?

Muito obrigada desde já.

 

N. E. – Manteve-se a grafia correcta, anterior à ortografia vigente (correta).

Resposta:

No Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, José Pedro Machado considera que "Quada" (opinião que parece extensível a Cuada, que ele não regista) é má grafia por Coada, que relaciona com o nome comum coada, cujo significado o referido autor não esclarece.

Registe-se, mesmo assim, que, como nome comum, coada significa «porção de líquido coado» e «barrela», de acordo com a definição de Cândido de Figueiredo, no Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de 1913. Talvez coada tenha que ver, portanto, com coar ou escoar e seja alusão a uma linha definida pela escorrência de águas. Ou estará o topónimo relacionado com um lugar usado para  fazer a barrela, isto é, ou para produzir «o caldo coado de cinzas vegetais ou de soda, usualmente para clarear roupa» (Dicionário Houaiss), ou para fazer a limpeza em que se aplicava esse produto?

Por enquanto, faltam aqui ainda elementos a respeito da história desta localidade e do topónimo, que permitam alcançar um parecer etimológico mais conclusivo. É, portanto, ainda prematuro considerar completamente erróneas as formas "Cuada" e "Quada", sem uma etimologia segura.

Pergunta:

Considerando estas duas definições,

(1) «bó | interj. bó interjeição [Regionalismo] Expressão que indica admiração ou espanto. = ORA ESSA "bó» (in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa; consultado em 04-05-2020].

(2) «bô adj. Pop. e ant. O mesmo que bom: “pois que tinha bô lugar”. G. Vicente, J. da Beira.» (in Novo Diccionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo 1913)

Como devemos escrever/dizer: "bó" ou"bô"?

Bó! — Bô!

Bó-era! — Bô-era!

Bó-geira — Bô-geira

Bó! Já agora? — Bô! Já agora?

Bó! Não querias mais nada? — Bô! Não querias mais nada?

Bó! Quem me dera? — Bô! Quem me dera?

Muito obrigado.

Resposta:

Como se trata de um regionalismo, não tem de se impor uma forma padronizada de pronunciar nem de escrever.

No entanto, tem-se considerado que a interjeição tem origem em , que é variante de bom, com o fechado desnasalizado. Nesta perspetiva, a grafia com ô seria mais correta, no sentido de a fonética e da grafia da interjeição estarem mais próximas das do adjetivo donde supostamente provêm. Contudo, não se exclui a possibilidade de, numa dada comunidade de falantes, ocorrerem casos de o aberto, e, portanto, não se dirá que esteja incorreto.

Perante cada par de exemplos da lista recolhida pelo consulente, é, portanto, difícil identificar a forma mais correta. Por outro lado, o facto de na pergunta se apresentarem tais formas em alternativa pode até indiciar que a interjeição tem oscilações de pronúncia, o que não admira, tratando-se de uma expressão profundamente implicada na oralidade. Atendendo a que a pergunta foi enviada de Vimioso, no extremo oriental de Trás-os-Montes, numa região historicamente sob influência dos dialetos leoneses (onde provém a língua mirandesa), é possível que o contraste fonológico entre o aberto e o fechado, que tais dialetos desconhecem, se neutralize, o que contribuirá para oscilações na pronúncia de casos como este.

Refira-se, entretanto, que dois dicionários de regionalismos desta região1 consignam a forma , indicativa de o fechado e correspondente não só a bom, mas também a boa

Pergunta:

Na gramática de Fernando Pestana (2019), ele diz que locuções adjetivas (à bela, à lenha, etc.), adverbiais (às pressas, à vista, etc.), conjuntivas (à medida que/à proporção que) e prepositivas (à custa de, à moda de, etc.) levam crase «porque a preposição a que inicia tais locuções se funde com o artigo a que vem antes do núcleo feminino. O acento grave é fixo» (p .785). Assim ensinam muitos gramáticos (Nicola/terra,etc).

Entretanto Manoel P. Ribeiro, na sua gramática, 2011, pág. 307, diz: «A tradição gramatical assinala com acento grave certas locuções (adverbiais,prepositivas e conjuncionais ,adjetivas) em que verdadeiramente não ocorre crase. O acento grave é empregado para diferenciar a preposição a do artigo a.»

[Evanido] Bechara em sua gramática, 2009, diz que o acento grave tem duas funções e uma delas é «representar a pura preposição a que rege um substantivo feminino singular, formando uma locução adverbial» (pág.308).

Então há crase (fusão artigo+preposição ) ou só acento grave assinalando a preposição nas locuções adverbiais, prepositivas , conjuncionais e adjetivas? Qual das duas visões é a correta ?

Grato pela ajuda.

Resposta:

Muito se agradece a chamada atenção do consulente, que dá uma pista muito interessante para a história da ortografia da língua portuguesa. Trata-se, com efeito, de uma interpretação que parece apenas válida no Brasil.

O que diz Fernando Pestana decorre do que se lê nas normas ortográficas vigentes no Brasil e em Portugal nos últimos 75 anos. Por exemplo, no Formulário Ortográfico de 1943, que vigorou no Brasil até 2009, lia-se que (XII, 43):

«16ª – O acento grave assinala as contrações da preposição a com o artigo a e com os adjetivos ou pronomes demonstrativos a, aquele, aqueloutro, aquilo, os quais se escreverão assim: á, às, àquele, àquela, àqueles, àquelas, àquilo, àqueloutro, àqueloutra, àqueloutros, àqueloutras.»

No Brasil, a norma ortográfica de 1943 só previa, portanto,  o acento grave nas contrações da preposição a com o artigo definido a. O Acordo Ortográfico de 1945 e o atual Acordo Ortográfico de 1990, que é hoje comum ao Brasil e Portugal, não se afastam deste preceito, o qual fará supor, por exemplo, a locução «à vista» se escreve assim porque o à constitui uma contração. Em Portugal, assim se julga, até porque é o que sugere a sua pronúncia como "a" aberto, claramente contrastada com a pronúncia da preposição a e do artigo definido, que, isoladamente, soam com "a" fechado.

Contudo, tem fundamento histórico e justifica-se a visão de Manoel P. Ribeiro e de Evanildo Bechara, a qual ...

Pergunta:

Dada a profusão de sites que se referem a essas pequenas plantas de belas flores coloridas mas de cheiro pouco agradável como cravos túnicos, suponho que sou eu que estou errada.

Sempre os conheci como cravos púnicos, ou seja, «cravos fenícios». No entanto, sendo púnico um termo tão pouco conhecido da maioria dos falantes desta língua, sempre assumi que a troca se devesse a uma maior sensação de familiaridade com a palavra "túnico", provavelmente derivada de túnica.

Estou errada? Será que os meus cravos nunca foram realmente fenícios e foram buscar o nome a uma peça de roupa?

Resposta:

É difícil ser perentório quanto à forma correta do nome em questão.

É possível que túnico esteja em lugar de púnico, mas são tantos os nomes dados à planta, que surgem dificuldades até para saber de que planta se trata realmente – pelo menos, pode ser quer a Tagetes patula1 quer a Tagetes erecta. Além disso, tem vários nomes em português2, havendo variação regional.

Apesar de tudo, uma consulta de páginas da Internet revela que cravo-túnico é a forma corrente. Pode tratar-se de facto de uma analogia com túnica, talvez mais presente no espírito do falante médio. No entanto, também se encontra a denominação cravo-de-tunes, que tanto pode ter motivado um gentílico deturpado ("túnico", em vez dos corretos tunesino ou tunisino)2, como corresponder a uma nova interpretação com base na anterior troca de púnico por "túnico".*

Registe-se, mesmo assim, uma frase retirada de um texto de João Bénard da Costa atesta o uso de cravo-púnico (manteve-se a grafia original):

(1) «O tema de Lark, vestida de arminho ou de prata, trazendo na mão um cravo púnico ou uma rosa da Pérsia.» ("As almas do outro mundo" 05/09/2003, in Público)1

Contudo, no mesmo jornal em que se encontra cravo-púnico, acha-se um artigo publicado anos mais tarde, a abordar o tema das flores comestíveis, no qual se escreve cravo-tunico, identificando com a ...