Filipe Carvalho - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Filipe Carvalho
Filipe Carvalho
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Mestre em Teoria da Literatura (2003) e licenciado em Estudos Portugueses (1993). Professor de língua portuguesa, latina, francesa e inglesa em várias escolas oficiais, profissionais e particulares dos ensinos básico, secundário e universitário. Formador de Formadores (1994), organizou e ministrou vários cursos, tanto em regime presencial, como semipresencial (B-learning) e à distância (E-learning). Supervisor de formação e responsável por plataforma contendo 80 cursos profissionais.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«A praia estava como devia estar, com sol e ondas baixas» (Teolinda Gersão, "Avó e neto contra vento e areia", in A Mulher Que Prendeu a Chuva e Outras Histórias).

Nesta frase, além da comparação, podemos ter uma enumeração?

Obrigado.

Resposta:

«A praia estava como devia estar...» é uma comparação, pois comparam-se dois elementos e está presente a partícula comparativa como.

«...com sol e ondas baixas» é uma enumeração, uma vez que se enumeram elementos que caracterizam a praia naquele dia e naquela altura.

De notar que, segundo a gramática de Vítor Fernando Barros, Gramática da Língua Portuguesa (Âncora Editora, Edições Colibri, 2011, p. 279), a enumeração «[c]onsiste na apresentação sucessiva de vários elementos, pertencendo, regra geral, à mesma classe gramatical». A comparação, por outro lado, «[c]onsiste na aproximação de duas realidades com o objetivo de destacar as suas semelhanças, feitas através da conjunção como e outras locuções conjuntivas equivalentes ou de um verbo com função semelhante (parecer, lembrar, sugerir, assemelhar-se, etc.)» (p. 284).

Pergunta:

Gostaria de saber qual o significado da expressão «o tempo é luxo que a nossa vida não só desrespeita como desmerece».

Resposta:

A resposta a esta questão é subjetiva, ou seja, cada um interpreta a expressão à sua maneira, desde que a fundamentação da mesma seja credível e documentada. Por esse motivo, não poderá haver uma resposta absoluta.

A expressão «O tempo é luxo...» pode ser interpretada como «O tempo é precioso...». A metáfora presente remete para a valorização do tempo; «...que a nossa vida não só desrespeita como desmerece» aponta para o comportamento das pessoas durante a sua vida, não aproveitando o tempo que lhes é concedido. A “vida”, que aparece personificada, é a responsável por não se aproveitar o tempo e, por isso, não é merecedora do bem precioso que lhe foi dado: o tempo. 

Pergunta:

Há já bastantes anos que tenho ouvido uma conjugação verbal nova. Pelo menos não me recordo de ser assim antes, e parece que agora se tornou dominante, mas que eu me recuso a usar. Às vezes num relato de futebol era bem comum. Exemplo: «Se ele tinha marcado falta, o Ronaldo teria sido expulso do jogo.» Não deveria ser: «Se ele tivesse marcado falta, o Ronaldo teria sido expulso do jogo»? Parece-me uma hibridação de dois tipos de conjunção verbal distintos. Este tipo de conjunção, a meu ver incorreta, é absolutamente comum nos dias que correm. Outro exemplo: «Se eu tinha deixado cair as chaves, não poderia entrar no carro.» Creio que o correto é: «Se eu tivesse deixado cair as chaves (...).» Isto faz algum sentido, ou terei de me converter a algo que acreditava estar errado?

Muito obrigado.

Resposta:

A objeção do consulente faz todo o sentido. A construção das orações condicionais obedece a determinadas regras. Assim, para orações subordinadas condicionais que têm o verbo no mais-que-perfeito composto do conjuntivo, dever-se-á colocar o verbo da subordinante no condicional composto.  Na frase: «Se ele tinha marcado falta, o Ronaldo teria sido expulso do jogo», o tempo verbal da oração condicional aparece no mais-que-perfeito composto do indicativo do verbo marcar, mas deveria estar no mais-que-perfeito composto do conjuntivo («tivesse marcado»). No segundo exemplo – «Se eu tinha deixado cair as chaves, não poderia entrar no carro» –, a frase correta será: «Se eu deixasse cair as chaves, não poderia entrar no carro» ou «Se eu tivesse deixado cair as chaves, não teria podido entrar no carro». No primeiro exemplo, o verbo da oração condicional está no imperfeito do conjuntivo e, como mandam as regras, o verbo da subordinante deverá estar no condicional presente. No segundo, obedece às mesmas regras do que acima foi explicitado, ou seja, a condicional com o verbo no mais-que-perfeito composto do conjuntivo, e a subordinante com o verbo no condicional composto.

Pergunta:

Devemos escrever «o pai usou a prudência para lhe fazer ver aquilo», «o pai usou da prudência para lhe fazer ver aquilo», ou «o pai usou de prudência para lhe fazer ver aquilo»? Nunca percebi esta formulação.

Obrigado.

Resposta:

«O pai usou de prudência para lhe fazer ver aquilo» e «O pai usou a prudência para lhe fazer ver aquilo» são ambas frases pertinentes.

O Dicionário de Verbos e Regimes (Rio de Janeiro/Porto Alegre/São Paulo, Editora da Livraria do Globo, 1947), de Francisco Fernandes, ilustra  o uso da regência com frases de alguns autores literários; por exemplo:

1 – «Ao capitão pedia que lhe dê mostras das fortes armas de que usavam» (Camões, Lusíadas, I, 63).

Na mesma linha vai o Dicionário Sintático de Verbos Portugueses (Coimbra, Almedina, 1994), de  Winfried Busse, o qual, além de registar o uso transitivo do verbo (ou seja, com complemento direto), salienta a utilização do verbo usar com um complemento preposicionado. O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa também admite, a par do emprego transitivo de usar, o uso da preposição de.

A preposição de é uma escolha do sujeito enunciador no que respeita a querer determinar o que o sujeito utiliza. Se se pretender apresentar o que o sujeito usa, então, deve utilizar-se o complemento direto (acusativo) sem a partícula de. Exemplo: «Ele usa o charme para as seduzir.» Se se desejar dar ênfase ao valor instrumental daquilo que é usado, a frase ficaria da seguinte maneira: «Ele usa do charme para a seduzir.»

Pergunta:

Estudo o folclore há cerca de 50 anos, e durante 35 fiz a pesquisa etnocultural da freguesia de Montargil, que por alguns especialistas é considerada uma referência na região. E o que é para nós, folcloristas e etnógrafos, o folclore? Digamos que a expressão de todas as vivências das gentes de antigamente quando ainda não eram influenciadas por diferentes maneiras de ser e de estar. Mas todos conhecemos expressões como «não ligues, que isso não passa de folclore», o que a Sociedade da Língua Portuguesa diz só se poder admitir a pessoas analfabetas ou de pouca cultura. Acontece ainda que em Portugal é marcante o desconhecimento sobre a matéria. Mas o que eu agradeço, antes que volte ao vosso contacto – os vossos esclarecimentos são importantes! –, é que me digam o que entendem como folclore.

Obrigado.

Resposta:

O que se entende por folclore, numa forma sintética e direta, pode ser observado no que está dicionarizado. É uma palavra que tem origem no inglês, significando folk, «povo», e lore, «conhecimento». Folclore será o «conjunto das tradições, lendas ou crenças populares de um país ou de uma região expressas em danças, provérbios, contos ou canções» (Priberam). Não obstante, a definição do vocábulo e do que representa é motivo de definições várias e bem mais extensas. Compreende-se que um amante do folclore, que dedicou tantos e longos anos ao seu estudo, se sinta melindrado quando ouve ou vê registada a expressão «não ligues, que isso não passa de folclore». A sabedoria popular assenta numa dupla vertente composta por experiências feitas, em que os provérbios são um exemplo bem esclarecedor e enriquecedor, e na interpretação fácil e superficial de certos aspetos ou eventos. Neste último caso, há uma interpretação à rama de uma referência cultural muito interessante e profunda como é o folclore. As observações são feitas à superfície, e as danças e cantares são assimilados como meras expressões de recreio e divertimento ruidoso. Daí a expressão utilizada querendo significar que os assuntos mais sérios são dignos de reflexão, e os outros são folclore. No entanto, a cultura de um povo é algo de inestimável riqueza, e o folclore dá um contributo importantíssimo nesse sentido.