Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2. Com pós-graduação em Edição de Texto, trabalha na área da revisão de texto. Exerce funções como leitora no ISCTE.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na Idade Média, filhar significava roubar, tirar qualquer coisa a alguém. Em relação a uma tradução que estou a fazer de um livro de história de dinamarquês para português, e dado o contexto, "apetece-me" usar o termo filhar, uma vez que o enredo decorre na Idade Média. Será que me posso permitir o uso de filhar, mesmo que hoje em dia não conste dos dicionários?

Melhores cumprimentos.

Resposta:

Filhar é um verbo classificado como um arcaísmo, sendo atualmente pouco ou nada usado. No entanto, uma vez que os arcaísmos são uma forma de enriquecimento linguístico, não há porque não usar este verbo no sentido de «tomar por força, agarrar, segurar, filar; tomar, colher, apanhar; receber, tomar conta de» (cf. Dicionário Houaiss).

Note-se que a origem deste verbo é controversa. Certos autores consideram que «seria o mesmo [que] filhar (formação vernacular de filho + -ar), com precedência documental na acepção de «ter como filho, adotar como seu, defender», que teria passado por evolução de sentido circular: «chamar a si alguém como filho»: «chamar a si algo»: «pegar, tomar para si» (Dicionário Houaiss). Há quem lhe atribua origem diferente de filhar (no sentido de «perfilhar») e o associe a filar, que significa «agarrar, segurar fortemente» e cuja palatização (-l- > -lh-) terá origem no latim popular piliare, que, por sua vez, vem do latim clássico pìlo, as, avi, atum, are, «apoiar, esteiar, segurar, sustentar com força» e, por extensão, «pilhar, roubar, espoliar, despojar» (idem).

Pergunta:

Tenho dúvidas:

1) no contexto das habilidades manuais, qual seria a grafia correta: "dichavar"/"dechavar"/"dixavar"/"dexavar"?

2) dada a polissemia do verbo, será que tem jeito certo de escrever?

Os dicionários esqueceram essa palavra. Somente o ligeiro dicionarioinformal.com.br discorre sobre ela.

Aliás:

3) Será uma só, ou são várias palavras?

Muito grato.

Resposta:

Nos dicionários a que temos acesso, o único que atesta os vários verbos é efetivamente o Dicionário Informal (em linha), tal como o consulente referiu. Neste dicionário não há referência à etimologia das formas em questão, que têm todas o significado de «omitir, tornar discreto, desfazer» – à exceção de dixavar, a que também se atribui a aceção de «agredir, realizar algo digno de admiração» –, pelo que se torna difícil precisar a grafia correta. Assim, à falta de linhas orientadoras que nos ajudem a descortinar qual a grafia a adotar por este verbo, arriscamo-nos a dizer que se pode usar qualquer uma das quatro atestadas no Dicionário Informal.

Note-se que este verbo parece ser relativamente recente e usado no Brasil, em contextos de marginalidade social, nomeadamente quando se refere o ato de desfazer uma dose de maconha, ou seja, haxixe  («dixavar/dichavar/dexavar/dechavar maconha»), o que leva a prever que ocorra somente no discurso oral ou em documentos escritos que reproduzam a oralidade.

Pergunta:

Devemos considerar hipo- um prefixo, ou um radical? Sendo prefixo, todas as palavras que o integrem serão derivadas? Sendo radical, as palavras que o integram são compostas? Ou hipo-, significando «cavalo», é radical e, significando «menor», é prefixo, decorrendo daí as devidas consequências?

Obrigada.

Resposta:

A forma hipo- ocorre como prefixo ou como radical, ambos de origem grega.

Vejamos: se hipo- for associado a um substantivo com o sentido de «posição inferior, escassez», estamos perante uma palavra derivada por prefixação (cf. Celso Cunha e Lindley Cintra, 1984, Nova Gramática do Português Contemporâneo, p. 85-89); ex.: hipotensão («pressão inferior à normal, especialmente no interior de um órgão do corpo ou num sistema orgânico», Dicionário Houaiss). Por outro lado, se for aplicado no sentido de «cavalo», hipo- é um radical, ou seja, um elemento de palavra composta (Cunha e Cintra, 1984, p. 111); ex.: hipódromo («local com pistas próprias para corridas de cavalos e tribunas para o público», idem).1

1 O consulente Giovanni Saponaro enviou a seguinte achega, que muito se agradece: «Em relação [a esta resposta], talvez seja útil mencionar também a diferente etimologia: hipo- no sentido de «inferior» vem do grego ὑπο- (hypo-), enquanto hipo- no sentido de «cavalo» vem do grego ἵππος (hippos). As diferenças nas duas palavras em grego (letra ípsilon inicial e letra pi simples no primeiro caso; letra iota inicial e letras pi duplas no segundo) são anuladas na grafia portuguesa, que se estabeleceu como hipo- em ambos os casos. O mesmo não aconteceu em outras línguas, por exemplo em inglês, em que se escreve hypotension vs. hippodrome».

Cf. ...

Pergunta:

A locução exclamatória «bem feito!» (usada ironicamente quando sucede mal a alguém que tem culpa) poderá também admitir a forma «bem feita!», que frequentemente também se ouve?

Resposta:

Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, a locução exclamativa «bem feito!» (provavelmente de «isso é bem feito!») é «usada para indicar que, na opinião do locutor, o mal que acontece é merecido», ou seja, que «exprime satisfação pelo mal sucedido a alguém», e admite, efetivamente, a forma «bem feita!», com o mesmo significado (provavelmente de «essa coisa é bem feita»; cf. «hás de pagá-las», no sentido de «hás de receber castigo/retaliação», em que o feminino parece pressupor uma palavra do mesmo género: «contas», «culpas»). 

Note-se que as exclamações são características do discurso oral. Podem surgir no discurso escrito caso se verifique uma reprodução do discurso oral.

Pergunta:

Estou a fazer um trabalho que exige identificar a etimologia do termo octógono e do seu equivalente inglês octagon. De acordo com José Pedro Machado, no seu Dicionário Etimológico, o nome octógono deriva do grego októgonos pelo latim octógonos. Entre os dicionários da língua portuguesa que consultei, uns coincidem com J. P. Machado, outros apontam para oktágonos e octogonos, respetivamente. As fontes em língua inglesa que consultei remetem o étimo da palavra octagon para o grego oktágonos, pelo latim octagonos, validando assim a presença do a no termo inglês, que, por sinal, também está presente no catalão, no italiano, e, no caso do castelhano, a Real Academia Española admite as duas formas ortográficas. Qual é realmente a origem desta palavra?

Resposta:

O substantivo em questão aceita, à semelhança da língua castelhana, duas grafias: octógono e octágono. Esta dupla morfologia deve-se ao facto de se tratar de um substantivo que surgiu no contexto científico a partir do século XVI e, como tal, pode envolver elementos tanto do grego como do latim. Assim, temos por um lado a forma octágono, que tem uma formação homogénea, sendo que os seus dois elementos mórficos são de origem grega. Por outro lado, temos a forma octógono, que é um substantivo de formação híbrida, ou seja, o primeiro elemento, octo-, tem origem no latim, e o segundo elemento mórfico-gono, tem origem no grego (ver -gono no Dicionário Houaiss).

Refira-se que octágono parece ser menos usado que octógono, visto os dicionários remeterem a forma constituída pelos dois elementos gregos para a forma híbrida, latino-grega (cf. Dicionário Houaiss).