DÚVIDAS

Concordância com quantificadores: «maioria de», «metade de»

Exponho abaixo o que considero saber com certeza sobre a constituição do grupo nominal (com alguns exemplos) para depois expor as situações que me geram dúvida.

Um grupo nominal...

1. tem por núcleo um nome ou um pronome n: Lisboa pron: ele

2. ao nome podem estar associados um ou mais determinantes det art def + det poss + n: «o meu carro» det demonstr + n: «este carro»

3. ao pronome pode estar associado um determinante artigo det art def + pron poss: «o teu»

4. tanto ao nome como ao pronome pode estar associado um quantificador quant univ + det art def + n: «todos os carros» quant univ + pron: «todos eles»

5. ao nome podem ainda estar associados o complemento do nome e/ou modificadores do nome (restritivo ou apositivo) [det art def + n + [prep + det art def + n] ]: [o carro [da Maria] ] [det art def + n + [adj] ]: [o carro [azul] ]

Nos exemplos deste último ponto, o grupo nominal inclui um grupo preposicional e um grupo adjetival, respetivamente, os quais assumem as funções de complemento e modificador, respetivamente.

No entanto, há várias grupos nominais que me deixam em dúvida sobre como encarar a sua constituição, todos eles incluindo quantificadores que são expressões partitivas. Por exemplo: «alguns dos carros»/«a metade dos carros». Em ambos os exemplos, a análise que faço da estrutura é [quant [prep + det art def + n] ], o que me levou a concluir (com muita certeza de ser a conclusão errada) que o quantificador pode constituir o núcleo de um grupo nominal sendo seguido por um grupo preposicional.

Na sequência da minha confusão, palmilhei todas as perguntas na categoria de quantificadores, e selecionei duas explicações que indico abaixo e que me parecem particularmente relevantes mas que me deixam ainda perplexa.

– excerto de explicação 1.

Numa resposta do Ciberdúvidas sobre a concordância do verbo com expressões partitivas é mencionado um extrato da Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, pp. 942/943), que inclui o excerto abaixo:

«Admite-se que é o nome nuclear de um sintagma nominal que desencadeia a concordância verbal. Assim, [no exemplo] acima, a concordância singular corresponde a uma estrutura em que o núcleo sintático do sintagma nominal complexo é o numeral, ao passo que a concordância plural corresponde a uma estrutura em que o núcleo do sintagma nominal é o nome que denota o domínio da quantificação.» (in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, consultado em 12-02-2023)

– excerto de explicação 2.

Na resposta à questão "Percentagem + adjetivo: «31% maior", pode ler-se:

«Relativamente aos quantificadores numerais percentuais, recorde-se que estes podem incidir sobre um nome, como acontece em (1):

(1) "Dez por cento dos alunos leram este livro."

Não obstante, estes quantificadores também podem incidir sobre um adjetivo, como se verifica em (2)1:

(2) "Os livros ficaram dez por cento mais caros."

Assim sendo, podemos concluir que os quantificadores numerais têm a possibilidade de incidir sobre um adjetivo.» (in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, consultado em 12-02-2023)

– A estrutura dos exemplos com quantificadores numerais percentuais parece-me em tudo idêntica à dos meus exemplos, mas não me é claro o que a expressão «incidir sobre» significa para a análise dos constituintes do sintagma. A ideia de que «Assim, [no exemplo] acima, a concordância singular corresponde a uma estrutura em que o núcleo sintático do sintagma nominal complexo é o numeral», expressa no excerto 1, parece reforçar a minha conclusão inicial de que o quantificador pode, em expressões partitivas, ser núcleo do sintagma nominal, mas tal ideia continua a soar-me herética.

Acrescento em nota de rodapé que há vários anos que leciono acima de tudo línguas estrangeiras e que as raras vezes que trabalhei a língua portuguesa foi com alunos do 2.º ciclo. Eu tenho a noção de que estas questões podem ser consideradas avançadas, mas parece-me contraprodutivo não ter uma resposta para dar aos alunos (poucos, é certo, mas não irrelevantes) que demonstram interesse e querem saber mais. Não ter uma resposta para dar a esses alunos é especialmente desmotivante quando começam a ganhar confiança na sua capacidade de não só identificar classes de palavras, mas também de as agrupar em grupos hierárquicos e atribuir-lhes funções, pois esses poucos tentam depois por sua própria iniciativa aventurar-se mais à frente, em busca tanto de desafios como de validação dos seus conhecimentos e capacidades. A este nível não precisam de memorizar já os nomes dos diferentes tipos de complementos e modificadores, mas sabendo que cada grupo frásico tem uma função sintática, podem facilmente deduzir que aquele grupo preposicional à frente do quantificador há de ser um qualquer complemento ou modificador anónimo aninhado dentro do grupo nominal do sujeito. Infelizmente, eu não sei o que lhes dizer.

Resposta

 Com efeito, como propõe a consulente, há quantificadores que funcionam como núcleo do grupo nominal. Este facto fica claro quando são eles que comandam o processo de concordância:

(1) «A maioria dos estudantes vai às aulas.»

(2) «Metade dos estudantes já leu este livro.»

É por esta razão que na Gramática do Português se considera que estes quantificadores são «do ponto de vista gramatical, substantivos marcados por um traço de número (singular) e de género (masculino ou feminino), capazes, portanto, de desencadear a concordância verbal e predicativa regulares quando são o núcleo de um sintagma nominal com a função de sujeito»1 2.

Será esta a explicação que se poderá fornecer aos alunos, explicando que no domínio gramatical as realidades não são estanques, o que exige sensibilidade para interpretar comportamentos particulares das palavras.

Disponha sempre!

 

1. Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2459.

2. Note-se que, no caso da concordância do plural, já se assume que o núcleo do sintagma é o nome comum estudantes

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