DÚVIDAS

A pronúncia de torpe

Gostava de saber ao certo qual é a pronuncia recomendada da palavra torpe (quer no sentido de «entorpecimento» como no de «desonesto» ou «indigno»).

Querendo confirmar uma pronúncia estranha que ouvi a um jornalista da RTP, deparei-me com registos divergentes tanto no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, como no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, assim como no ainda tão respeitável Vocabulário da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves.

Resposta

A forma torpe corresponde a duas palavras que podem ser homógrafas (mesma grafia, pronúncia diferente) ou homónimas (mesma grafia, mesma pronúncia):

—  Torpe1, «que entorpece»,1 parece derivado regressivo de torpecer (Dicionário Houaiss),2 ocorrendo em contextos como os seguintes: «o calor torpe do verão»; «as mãos torpes com o ar gelado da noite» (atestações do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa).

A respeito desta palavra, as transcrições fonéticas disponíveis em dicionário não coincidem: no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (ACL), o adjetivo surge transcrito com o fechado ([tóɾpɨ]) , mas o Grande Dicionário da Língua Portuguesa (GDLP) da Porto Editora transcreve-o com o aberto ([ˈtɔɾpə]).3 

Torpe2, «ignóbil, indecoroso, infame», cuja etimologia remonta ao latim turpis, e, «disforme, desfigurado, feio; fig. vergonhoso, desonroso, ignóbil» (Dicionário Houaiss), é usado, por exemplo, na frase «nada me estimula mais do que a provocação torpe e soez» (exemplo retirado do corpus CETEM/Público, Linguateca). Este vocábulo figura transcrito com o fechado tanto no dicionário da ACL ([ˈtoɾpɨ]) como no GDPL ([ˈtoɾpə]).

Refira-se que o Vocabulário da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves, assinala diferença de pronúncia entre o adjetivo torpe1, «que entorpece», ao qual atribui o aberto,  e torpe2, «ignóbil, indecoroso, infame», com indicação de ter o fechado. O Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, regista torpe1, sem anotação sobre pronúncia, mas refere um o fechado para torpe2.

Não  encontro, portanto, as divergências que o consulente refere. Deparei-me, sim, com duas palavras que podem distinguir-se pelas vogais da primeira sílaba. De qualquer modo, penso que ficou claro que se deve pronunciar torpe2, «ignóbil, indecoroso, infame», com o fechado.

Dito isto, compreendo, no entanto, que grasse a confusão quanto à pronúncia de torpe2, visto que há grande afinidade semântica entre este adjetivo e torpe1, cuja pronúncia é, como se viu, instável. Com efeito, torpe 1, por extensão semântica, vem a significar «que perdeu a ação, o vigor» e «que não consegue ter iniciativa» (ver dicionário da ACL), aceções de valor depreciativo que convergem com a significação de torpe2, na medida em que a pessoa ou aquilo a que falta energia pode ser encarado como desprezível e, portanto, ignóbil.3

1 Para as significações foi consultado o Dicionário Houaiss.

2 José Pedro Machado, no seu Grande Dicionário da Língua Portuguesa, liga torpe1 ao latim torpidu, mas deixa por explicar a perda da  seuência -idu do latim ao português O dicionário da Academia das Ciências de Lisboa relaciona torpe1 com o verbo latino tŏrpere, «estar entorpecido», igualmente sem esclarecer as fases intermédias da etimologia do adjetivo português. Note-se o Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine de A. Ernout e A. Meillet não relaciona etimogicamente tŏrpere com turpis, apesar dos radicais semelhantes (torp-, turp-).

3 No GDLP, ocorre o símbolo [ə], usado com o mesmo valor de [ɨ].

4 É curioso verificar que, em relação ao espanhol, o dicionário da Real Academia Espanhola regista uma única entrada com a forma torpe, com os seguintes significados: «que se mueve con dificultad» (=«que se mexe com dificuldade»); «desmañado» (=«desajeitado»); «rudo, tardo en comprender» (= «rude, lento de compreensão»); «deshonesto, impúdico, lascivo» (= «desonesto, impudico, lascivo»); «ignominioso, indecoroso, infame» (= «ignóbil, indecoroso, infame»); «feo, tosco, falto de ornato» (= «feio, tosco, falho de ornato»). Esta aceções, muito próximas das atribuídas, em português, a torpe1 e torpe2, parecem resultar da visão de que o contraste entre «que se mexe com dificuldade» e «ignóbil» faz parte da polissemia de um mesmo item lexical. Contudo, afigura-se discutível a atribuição ao espanhol torpe de um único étimo, dado que, para o português, o registo lexicográfico de torpe1 e torpe2 aponta para duas palavras com etimologias diferentes.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa