DÚVIDAS

Ainda a pronúncia de colite

Com respeito à pergunta sobre a pronúncia de colite, respondida pelo Sr. Carlos Rocha, e estendendo o comentário sobre esse mesmo assunto que está na "Primeira Página" de hoje, ocorreu-me perguntar porque os Portugueses têm tanta preocupação com a correção da pronúncia das palavras, não considerando as variações regionais que ocorrem em qualquer língua.

No Brasil também temos variações, mas nenhum professor se preocupa em ensinar que a pronúncia de "colite" é com "o" fechado ou aberto; ele ensinará como fala em seu meio e se alguém encontrar diferente em outra região apenas constatará que ali se fala diferente. Vejo pelo meu caso: nasci no Nordeste e vim para o Rio de Janeiro aos 17 anos e aqui constatei, a princípio, que certas palavras me soavam estranhas; enquanto eu pensava em "dia", ouvia "djia"; enquanto pensava em "dois", ouvia "doich"; enquanto pensava em "dente" ouvia "dentche", mas isso nunca me trouxe a preocupação de que eu deveria pensar se estava certo ou errado ao falar diferente. Com o tempo absorvi o falar "carioca" e hoje já nem percebo, e quando volto ao Nordeste continuo falando "carioca", sem me preocupar com o fato de que lá aprendi diferente.

Talvez por isso que aqui se dá menos importância à aprendizagem do padrão (?) da língua falada, o que pode até parecer inaceitável aos linguistas; a mim, particularmente, preocupa, isso sim, o escrever correto, porque a língua escrita é a que fica e perpetua o idioma para os séculos futuros, seja pela manutenção, seja pelas alterações que por certo ocorrerão.

Concluindo, não importa aos Brasileiros, em geral, se a pronúncia correta é a do Norte ou a do Sul, ou qual seja; falamos a mesma língua e independentemente das divergências de pronúncia, entendemo-nos os 194 milhões sem a menor dificuldade. E isso é uma riqueza que poucos países de grande população podem ostentar.

Resposta

Estamos certamente a falar de comportamentos e atitudes que dizem muito acerca da cultura dos países ou de certas áreas geográficas. Em Portugal, existe realmente um forte condicionamento das variedades regionais por aquilo que se considera a norma, por sua vez apoiada num padrão, o do falar das classes cultas ou influentes do eixo Coimbra-Lisboa. A verdade é que este padrão está há bastante tempo descrito e valorizado como norma desde, pelo menos, o século XVIII. É um padrão curioso, porque, no contexto da variação regional, é basicamente um dialecto centro-meridional (ver classificação das variedades do português em Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, págs. 9-24), o qual, por um lado, aceita uma inovação do Sul, a monotongação do ditongo representado por ou, e, por outro, mantém em  muitos contextos, como ditongo, a pronúncia do ditongo que se escreve ei, ao contrário dos dialectos meridionais (onde se diz "manera", sem ditongo). De resto, a norma do português europeu rejeita características fundamentais dos falares setentrionais: a neutralização da oposição entre /v/ e /b/, resolvida como /b/ (daí, na metade norte de Portugal, a tendência para pronunciar "baca" em vez de [v]aca ou, em alternativa, por hipercorrecção, articular "voi" em vez de [b]oi); o chamado "s apical" (que ainda hoje se ridiculariza injustamente, referindo-o como traço definidor de um estilo apelidado de «falar axim») e a consoante africada [tʃ] (ainda articulada por certos falantes em palavras como chão, chave ou chapéu), que, no Sul e em quase todo o Litoral, há muito se confundiu com o x de baixo.

A preocupação pela pronúncia correcta é certamente devedora de uma prática que se encontra nas grandes línguas imperiais europeias como o inglês, o francês, o alemão ou o espanhol, ou mesmo numa língua de cultura como o italiano. Todas essas línguas estão associadas a visões da vida política e social eivadas de uma forte exigência de unidade, das quais decorre uma noção de uso correcto. Acrescente-se que, durante o século XX, se manteve a ideia de que existia, para além de regras ortográficas, uma ortoépia, isto é, uma forma correcta de pronunciar as palavras, a que foram especialmente sensíveis certos meios, como, por exemplo, o da preparação de actores no Conservatório Nacional ou o da locução na rádio e depois na televisão.

Em relação ao caso de colite, deve dizer-se que, entre falantes do português europeu, a preocupação com o grau da abertura da vogal átona da sílaba inicial se relaciona também com o facto de a escolarização ter posto em contacto muitos falantes com formas escritas cuja pronúncia pode não ser a das regras gerais. No sentido de evitar ser notado pela pronúncia que pode trair uma origem menos ilustrada ou sofisticada, é natural que muitos falantes de português tenham dúvidas sobre certos termos, em especial sobre os provenientes de certas áreas especializadas.

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