DÚVIDAS

Ainda o nome latino Titus Flavius Josephus

Erudito consultor Carlos Rocha,

Adro/átrio, ruga/rua são palavras que têm uso na língua portuguesa atual. Assim também como escala/escada, Bento/Benedito/bendito, -ário/-eiro, etc., etc., etc.

No caso de Cipriano/"Cibrião", ambas originárias do prenome latino Cyprianus, só se usa atualmente Cipriano como prenome de pessoas e também para designar São Cipriano de Cartago, famoso padre da Igreja do século III, sendo Cibrião uma forma arcaica desusada desse mesmo antenome latino, salvo no caso dessa aldeia mencionada, o qual é, sem dúvida alguma, um caso isolado, um arcaísmo que acabou sobrevivendo por sorte, talvez até por conservadorismo.

No caso de Josefo/José, formas provenientes do antenome latino Josephus, a primeira é totalmente desusada atualmente como prenome masculino, sendo José a forma corrente usada por todos. Josefo não sobreviveu nem para designar personagens bíblicas como José do Egito ou São José, pai adotivo de Jesus Cristo. Pode ser que eu esteja enganado, mas se trata de uma aportuguesamento mal feito. A não ser que se prove que, desde sempre em nosso idioma, foi, primeiramente, Flavius Josephus, ou algo parecido, e, depois, Flávio Josefo, aí. sim Josefo seria um arcaísmo que sobreviveu como Cibrião.

Muito obrigado.

Resposta

Muito obrigado pelas suas observações, mas acho que elas confirmam afinal o que expliquei na resposta em causa. O caso de Cipriano/Cibrão (e não "Cibrião") é certamente o de palavras divergentes, em que uma delas, Cibrão (também se encontra o topónimo São Ciprião), é de facto um arcaísmo. Mas é preciso notar que os topónimos tendem a fixar formas arcaicas, que documentam fases passadas da história da língua. Assim, em contraste com a forma erudita Cipriano, Cibrão indicia uma série de fenómenos fonéticos típicos da fase galego-portuguesa (anteriores ao século XIII):

a) sonorização de consoante surda entre vogal e vibrante (p. ex. -ipr->-ibr- como em Ciprianu- > Cibrão);

b) e queda de -n- intervocálico (*Cibriano > *Cibrião > Cibrão; o * indica formas hipotéticas).

Deste modo se chegou a Cibrão em Portugal e a Cibrán e Cibrao na Galiza.1

O exemplo de Josefo não é propriamente o de um arcaísmo, se pensarmos que, quando se fala de história do português, o termo arcaísmo se aplica sobretudo a palavras medievais com escasso uso na norma-padrão contemporânea. Este antropónimo deve ser antes entendido no contexto da introdução de termos do latim clássico (latinismos) e do grego antigo em muitas línguas europeias, processo que se intensificou no Renascimento. Se consultar o Vocabulário da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves, verá que se consignam as formas José e Josefo: a primeira é registada sem comentários, enquanto a outra é descrita como «forma alatinada, correspondente a José» (idem). Quando é que se usa a forma alatinada Josefo? Precisamente quando queremos referir-nos ao historiador judeu Flávio Josefo (n. 37 d. C.-c. 100 d. C.), cujo nome em português tem uma aparência mais latina, muito provavelmente porque só era conhecido em meios eruditos. Não se trata de um aportuguesamento mal feito: é apenas um aportuguesamento menos "radical" que o de José, forma mais popular e corrente. Diga-se de passagem que mesmo em inglês há formas divergentes deste nome de origem hebraica, Joseph e Josephus, sendo esta simples adaptação do latim Josephus, nome do célebre historiador judeu.

Um último pormenor: escala e escada não são palavras divergentes, porque não pressupõem exactamente o mesmo étimo latino. Na verdade, escala é a adaptação de scala,ae, «escada, degrau», mas escada desenvolveu-se indirectamente de scala, mediante uma palavra derivada, o baixo-latim scalāta (> escaada (arcaico) > escada; Dicionário Houaiss).

1 Nos dialectos galego-portugueses medievais, a terminação latina -anu evoluiu como um hiato entre vogal nasalizada e vogal oral: [ão] (germanu- > irmão). Mais tarde, desenvolveu-se em português o conhecido ditongo nasal representado por -ão (séculos XIV-XV), mas os dialectos galegos optaram por duas soluções: -án ( [aŋ]), como em «o meu irmán» e -ao ([ao] ou [aw]), como em «o meu irmao».

 

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