DÚVIDAS

Associação de palavras gramaticais: «com que»

Entro em contato para sanar uma dúvida que me acompanha há algum tempo. Trata-se da locução «com que».

A construção completa é a seguinte:

«Lembro com que sentimento de encanto folheava o caderno que um vizinho me emprestara, contendo as lições de um quase nada daquela língua que ele aprendera quando seminarista.» (Extraído do prefácio da tradução de Irineu Bicudo de Os Elementos de Euclides.)

Para a análise, apenas a primeira oração é importante:

«Lembro com que sentimento de encanto folheava o caderno que um vizinho me emprestara.»

Minha pergunta é: o que significa exatamente esse «com que» nesse contexto? Como parafrasear essa oração? Seria esse um caso de anástrofe – isto é, uma passagem de «Lembro que, com sentimento de encanto, folheava o caderno que um vizinho me emprestara» para «Lembro com que sentimento de encanto folheava o caderno que um vizinho me emprestara»?

Tenho, porém, fortes dúvidas, porque em minhas pesquisas encontrei outro uso de «com que» que não parece decorrer de uma inversão:

«Mas, com que sentimento inesperado fui surpreendido pela visão quando cheguei diante dela! Uma impressão total e grandiosa preencheu a minha alma, impressão que eu certamente pude saborear e desfrutar, mas não conhecer e esclarecer, porque consistia em milhares de particularidades harmoniosas entre si.”* (Excerto de Escritos sobre Arte, Johann Wolfgang Goethe, tradução de Marco Aurélio Werle, 2008, 2.ª edição.)

Caso seja possível, agradeço se puderem indicar referências sobre essa locução «com que» e seu funcionamento sintático.

Resposta

Na frase «Lembro com que sentimentos de encanto folheava o caderno», pode surgir alguma dúvida quanto à função da expressão «com que». Embora, à primeira vista, se possa pensar tratar-se de uma simples inversão sintática (isto é, uma anástrofe) – como em «Lembro que, com sentimentos de encanto, folheava o caderno» –, a estrutura revela-se mais complexa e merece uma análise detalhada.

Antes de mais, importa esclarecer que "com que" não constitui uma locução, uma vez que não forma uma unidade lexical. Trata-se da preposição com seguida do constituinte com valor exclamativo que, formando uma unidade que introduz uma oração subordinada.

No caso em análise, a expressão «com que» introduz uma oração subordinada com valor exclamativo. Segundo Pilar BarbosaPedro Santos e Rita Veloso, (Gramática do Português Fundação Calouste Gulbenkian, págs. 2576 e 2577), este tipo de oração pode ser selecionado por um verbo principal – neste caso, lembrar – sendo que toda a proposição constitui o foco da exclamação. Assim, a oração introduzida por «com que» completa o sentido do verbo, evocando não apenas o ato de folhear o caderno, mas também os sentimentos que acompanharam essa ação, ou seja, expressa a recordação da vivência afetiva associada ao gesto. Quer isto dizer que a preposição com também está associada ao verbo folhear, isto é, o sujeito da frase folheava o caderno com sentimentos de encanto.

Neste contexto, é possível propor a substituição de «com que» por outros elementos, como a expressão «com quantos», que também pode introduzir orações subordinadas exclamativas. Veja-se, por exemplo:

(1)   «Lembro com quantos sentimentos de encanto folheava o caderno.»

A mesma estrutura verifica-se na frase: «Mas, com que sentimento inesperado fui surpreendido pela visão quando cheguei diante dela!» Também aqui, «com que sentimento inesperado» pode ser interpretado como uma oração subordinada exclamativa, que exprime a surpresa do sujeito face à natureza do sentimento que o acometeu.

Em suma, a expressão «com que» na frase analisada não se limita a uma simples inversão sintática, mas revela uma construção exclamativa que desempenha um papel essencial na estrutura e no sentido da oração.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa