DÚVIDAS

Dúvida sobre anacoluto e hipérbato

Gostaria de saber se há anacoluto na frase «As pernas parecia que tinham desaprendido de andar». Para o gramático Domingos Paschoal Cegalla, o anacoluto «é a quebra ou interrupção do fio da frase, ficando termos sintaticamente desligados do resto do período, sem função». Na minha avaliação, não há, na frase apresentada, nenhum termo desligado sintaticamente. Na frase haveria um hipérbato e não propriamente um anacoluto.

Muito grato.

Resposta

Na frase que nos apresenta — «As pernas parecia que tinham desaprendido de andar» — verifica-se que há uma «interrupção violenta ou progressão inconsistente da sequência lógica de uma frase, que continua ou finaliza em termos substancialmente diferentes do seu início», (E-Dicionário de Termos Literários) porque «parecia» interrompe a sequência lógica iniciada pela expressão «as pernas». Trata-se, portanto, de um caso de anacoluto.

Repare-se que a sequência lógica da frase implicaria a relação coerente entre sujeito e predicado, e, aqui, «parecia» não é o predicado de «as pernas». Se colocarmos correctamente a frase iniciada por «as pernas», ficaria «As pernas tinham desaprendido a andar». Mas o sentido da frase não é esse. Será «Parecia que as pernas tinham desaprendido a andar». Encontramo-nos, assim, perante uma frase que foi quebrada, razão pela qual também se chama ao anacoluto, também, frase quebrada.

Relativamente à hipótese da presença de hipérbato, é de referir que, segundo João David Pinto Correia, em «A expressividade na fala e na escrita» (in Falar melhor, Escrever melhor, 1.ª ed., Lisboa, Selecções do Reader’s Digest, 1991, pp. 497-497), tanto o anacoluto como o hipérbato são figuras de expressividade (de retórica ou de estilo), incluídas nas «figuras de construção por mudança (ou deslocação). Mas enquanto no anacoluto se trata «de um processo no qual a frase se nos apresenta desprovida de coerência sintáctica, por o falante adoptar, no desenvolvimento do discurso, uma construção concordante com a sua mudança de pensamento mais do que os usos gramaticais» (idem), em que se verifica uma «frase quebrada, mudada a concordância inicial em outra diversa» (idem) — por exemplo, «Este povo, que é meu, por quem derramo / […] / Por ele a ti rogando, choro e bramo» (Os Lusíadas, II, 40) —, já o hipérbato se caracteriza por uma «mudança violenta na ordem directa da palavras numa frase»: «Contra o tão raro em gente Lusitano» (Os Lusíadas, III, 34).

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa