DÚVIDAS

História da sinonímia de perceber com compreender

O verbo perceber no Brasil, é ligado na maioria das vezes ao sistema sensorial, à percepção:

«Você percebeu aquele movimento entre as folhas?»

«Você percebeu aquele ruído na parede?»

«Percebes a corrente de vento frio pela fresta da janela?» etc..

A acepção de «receber», também é usada, principalmente no linguajar jurídico ou mais culto, no sentido ligado à razão, como entender ou compreender, embora veja o seu uso constante em Portugal, soa muito estranho aos ouvidos brasileiros, sabe-se quando se deu essa diferença? Ou mesmo por quê?

Obrigado.

Resposta

Não foi possível identificar o momento em que perceber passou a significar «compreender, entender» no português de Portugal, uso que se ilustra, por exemplo, com exemplos de Miguel Torga e Júlio Dinis:

1. «Mal apareci em Sendim, intimou-me a comparecer na delegacia, para registar a carta e ser colectado. Tão ignorante que não percebeu o " villaregalensi " do latim. Sem uma palavra de boas-vindas, mesmo hipócrita, deixou-me partir.» (Miguel Torga, A Criação do Mundo)

2. «– Previ essas palavras, prima Madalena; por isso hesitei. Lamento sinceramente ter já perdido no uso do mundo uma tão simpática e adorável boa-fé nos outros, que é a maior prova de candura que se pode dar do próprio carácter.

D. Vitória não percebeu nada deste rápido diálogo; por isso exclamou:

– Mas que estão vocês aí a dizer? De quem falam? Eu, se vos entendo! » (Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais, 1868)

No entanto, é também possível detetar este uso em escritores brasileiros do século XIX:

3. «Félix sentiu pungir-lhe um remorso, e teve ímpeto de cair aos pés da bela viúva. Murmurou algumas palavras – que ela não percebeu ou não ouviu, até que o menino chamou a atenção de ambos, dizendo:

– Vamos, mamãe?» (Machado de Assis, Ressurreição, 1872)

4. «Clorinda trocou um olhar com o advogado, e este disse-lhe, refestelando-se no divã:

– Ma chère, il faut se contenter de cette habilleuse; nous ne sommes pas en Europe.

Ele impingiu esta frase em francês, para que não a entendesse a costureira, mas a verdade é que Clorinda também não percebeu, o que aliás não a impediu de responder:

– Oui.» (Artur Azevedo, Contos Fora de Moda, 1894)

Estes dados sugerem que, pelo menos, na linguagem literária brasileira do século XIX, perceber também se usava como sinónimo de «compreender, entender».

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