DÚVIDAS

Modificador apositivo e verbo auxiliar modal

No apoio a um aluno, surgiram-me duas dúvidas relativamente à análise sintática de dois elementos de uma frase. Esta é a seguinte:

«(...) o mano Guanes, como mais leve, devia trotar para a vila vizinha de Retortilho (...)»

O primeiro caso prende-se com o elemento entre vírgulas: aposto (acresce uma informação sobre o sujeito), ou complemento circunstancial de causa [modificador de grupo verbal pela nova terminologia — devia trotar (ele)]? Porquê?

O segundo caso está no verbo «trotar (para a vila vizinha de Retortilho)». Será um complexo verbal (em que «trotar» surge como verbo intransitivo)? Ou será como complemento direto de «devia», juntamente com o resto da frase «para a vila de Retortilho», introduzindo o verbo «trotar» uma oração substantiva integrante?

Gostaria de ter a vossa opinião.

Obrigado pelo vosso belo trabalho.

Resposta

1 – «como mais leve»

A questão que apresenta é pertinente, ainda que não de resposta simples, ou, mesmo, única… Se analisarmos o que se diz acerca do modificador apositivo do nome, veremos que ele é apresentado, maioritariamente, como podendo ser:

a) um grupo nominal — «D. Afonso Henriques, o Conquistador, foi o primeiro rei de Portugal.»
b) um grupo adjetival — «O Joaquim, jovem e trabalhador, tem tido sucesso na vida.»
c) um grupo preposicional — «A investigação, de valor incontestável, tem o apoio da Gulbenkian.»
d) uma oração subordinada adjetiva relativa explicativa — «O Joaquim, que é jovem e trabalhador, tem tido sucesso na vida.»

Evanildo Bechara, porém, na sua Moderna Gramática Portuguesa, considera que o aposto pode ter dois valores centrais:

a) Especificativo, em que um nome, muitas vezes nome próprio, complementa a informação de outro ocorrendo em adjacência, sem qualquer tipo de separação diacrítica: «o rio Amazonas»;
b) Explicativo, que contém informação acrescida sobre o nome e que ocorre entre vírgulas. Este aposto pode veicular valores secundários dos quais o autor destaca três:

1 – Enumerativo: a explicação consiste num desdobramento enumerativo que segue palavras como tudo, nada, ninguém, etc.: «Tudo — alegrias, tristezas, preocupações — ficava estampado logo no seu rosto», p. 457.
2 – Distributivo: «Machado de Assis e Gonçalves Dias são os meus escritores preferidos, aquele na prosa, este na poesia.»
3 – Circunstancial (comparação, tempo, causa, etc.). Pode, ou não, ser introduzido por palavra indutora do sentido: «As estrelas, como grandes olhos curiosos, espreitavam através da folhagem»; «D. João de Castro, (quando) vice-rei da Índia, empenhou os cabelos da barba.»

Tendo em conta esta definição, poderemos considerar que «como mais leve», em «(...) o mano Guanes, como mais leve, devia trotar para a vila vizinha de Retortilho (...)», é um modificador apositivo, que veicula um valor causal.

2 – «devia trotar»

O verbo dever pode ser transitivo direto e indireto em frases do tipo «O patrão deve o subsídio de Natal aos empregados», com o sentido de «estar obrigado a pagar ou restituir»; com a mesma estrutura argumental pode significar também «estar obrigado por, estar em agradecimento» («Devem-lhe muitos favores»); é, além disso, um auxiliar modal, veiculando uma ideia de obrigação, dever, necessidade.

É nesta última aceção que ocorre na frase em apreço, pelo que «devia trotar» deve ser analisado como um complexo verbal, em que «devia» é auxiliar modal, e «trotar» é o verbo principal que ocorre no infinitivo.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa