DÚVIDAS

Se apassivante e se indeterminado no português do século XVI

O verbo soar, no trecho de Os Lusíadas «E como por toda África se soa,/Lhe diz, os grandes feitos que fizeram», deveria estar no plural, pois são os feitos que soam, ou está correcto como está, pois não são os feitos que soam mas sim alguém que os faz soar?

Resposta

Trata-se de dois versos da estrofe 103 do canto II de Os Lusíadas (nas consultas, convém sempre referenciar devidamente a passagem a analisar) que têm a seguinte particularidade: ilustram como já no século XVI o pronome se era usado como sujeito indeterminado, equivalente ao pronome indefinido alguém, e não como partícula apassivante ou apassivadora.

Com efeito, se se tratasse de partícula apassivante, o verbo soar, usado transitivamente, teria de concordar com «os grandes feitos», que é o sujeito na construção passiva correspondente: «soam-se [= enaltecem-se] os grandes feitos» = «os grandes feitos são soados». Na verdade, o que se passa é que tal concordância não se verifica, mantendo-se o verbo no singular, apesar da sua transitividade, o que indicia que a concordância se faz com se, equivalente a alguém: «soa-se os grandes feitos» = «alguém soa os grandes feitos».

Como já se tem dito aqui, do ponto de vista normativo, há opiniões desencontradas sobre a legitimidade da construção de se indeterminado com verbos transitivos. De qualquer modo, as duas construções têm sido atestadas pela descrição linguística do português actual e, como vimos, de fases mais antigas da história da língua.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa