A transcrição em português de palavras russas e de outras línguas eslavas não tem tido uma história fácil. Quem pegue na obra Os Eslavos. Povos e Nações de Roger Portal (original francês; tradução portuguesa de Natália Nunes, Edições Cosmos, Lisboa-Rio de Janeiro, 1968) pode ler uma curiosa nota (idem, págs. 483-484) da tradutora acerca da forma como transcreveu os nomes eslavos: em línguas que usam o alfabeto latino respeitou as ortografias originais; com o sérvio e o búlgaro, que usam o alfabeto cirílico, recorreu à transcrição internacional em caracteres latinos; mas com o russo a tradutora adaptou a transcrição francesa, que é diferente da internacional. A tradutora adianta ainda que o «sistema de transcrição do original francês […] é uma transliteração e não uma transposição fonética […]», mostrando que o nome Onegin (que ocorre na obra de Pushkin, Eugénio Onegin) se escreve “Oniéguin” na transliteração francesa e poderia ser “Anhiéguinhe” numa transposição à maneira ortográfica portuguesa (a tradutora não recorre ao Alfabeto Fonético Internacional; em vez disso, socorre-se da ortografia portuguesa para uma representação aproximada dos sons russos).
Este caso parece-me mostrar que, à data de publicação (1968) da referida obra em português, não havia regras claras para a transliteração do russo em português. Esta situação é de compreender uma vez que nessa época não havia relações diplomáticas entre Portugal e o Estado que usava o russo como língua da administração, a antiga União Soviética. Quem consulte o Vocabulário da Língua Portuguesa de Rebelo Gonçalves, publicado em 1966, verá que são muito raros os nomes russos com forma portuguesa, o que pode ser bem o indício da falta de comunicação dire(c)ta entre o português europeu e a língua e a cultura russas. Depois de 1974, com a mudança de regime político em Portugal, houve uma abertura aos países que politicamente gravitavam à volta da União Soviética, o que trouxe naturalmente um maior conta(c)to com as línguas eslavas do Centro e do Leste europeus. Contudo, que eu saiba, não se criaram normas claras para a transcrição de nomes russos para português. Suspeito de que durante muito tempo o português europeu dependeu de outras transcrições em alfabeto latino, em particular da transcrição francesa, dado que o francês, através dos livros, foi até aos anos 80, em Portugal, o meio de conta(c)to com outras culturas europeias. Explica-se assim que se escreva Tchékhov ou Tchekhov (o nome russo tem acento na primeira sílaba), procurando um compromisso entre a transcrição francesa e a tradição ortográfica luso-brasileira, e Tchaikovsky, que é a forma em inglês ou a que está consagrada em francês mas sem trema (em francês escreve-se “Tchaïkovsky”).
Tudo isto serve para explicar que a solução aqui proposta é provisória e requer um enquadramento que só existirá quando forem criadas normas de transcrição. Deste modo:
1. A forma do topó[ô]nimo em causa é em russo Черно́быль (consultar esta página em inglês). Esta localidade fica hoje na Ucrânia, país onde o nome é escrito e pronunciado na língua nacional, o ucraniano, como Чoрно́быль. A transcrição internacional da forma russa em alfabeto latino pode variar, porque existem vários sistemas (consulte-se esta página em inglês). De qualquer modo, pode-se dizer que internacionalmente as transliterações mais comuns são “Chernobyl” ou “Černobyl”. Nestas formas, há a considerar como dificuldades para a transcrição ou o aportuguesamento da palavra:
– O símbolo Ч, transcrito como Ch ou Č e que corresponde a uma consoante africada, próxima do som [tʃ] existente em alguns dialectos do português (por exemplo, quando chave se pronuncia [tʃavɨ]” em vez de [tʃavɨ]).
– O símbolo ы, transcrito como y, cujo som se aproxima do chamado “e” mudo átono do português europeu (o primeiro e de certeza, representado na lingu[ü]ística portuguesa por ɨ, símbolo do Alfabeto Fonético Internacional).
– O símbolo ь (conhecido como “signo brando”), que é transcrito como ’; surge depois de consoante e marca uma característica do russo, a frequente palatalização de consoantes (no caso, л, que corresponde à letra l, passa a ль, que tem uma pronúncia próxima de lh em palha).
– Além disso, há a considerar a prosódia russa. O topó[ô]nimo “Chernobyl” tem acento de intensidade na penúltima sílaba, mas a ortografia russa não tem marcação de acentos, ainda que estes surjam por vezes nos dicionários.
2. É possível fazer o aportuguesamento? É, se tivermos em conta alguns aspectos:
– Internacionalmente, é corrente omitir a marca de palatalização (ь, transcrito ’), pelo que é é frequente escrever em inglês e francês “Chernobyl”.
– Em espanhol, usa-se por vezes “Chernóbil”, que marca a africada e o acento de palavra, transcreve a letra ы como i, e omite, como o inglês e o francês, o sinal de palatalização.
– Em Portugal, o dígrafo ch teve em tempos o valor de [tʃ], o que permitiu a Rebelo Gonçalves fixar a forma checo no Vocabulário da Língua Portuguesa. No Brasil preferiu-se escrever tcheco, não sei se por influência francesa (“tchèque”), se alemã (“Tscheschisch”). Poderíamos, portanto, usar o dígrafo ch, não porque ele corresponda à pronúncia mais próxima da original, mas porque do ponto vista histórico é a forma gráfica mais adequada.
– O uso do acento gráfico na penúltima sílaba é aconselhável, para indicar que a palavra é grave e não aguda, ou seja, para garantir alguma fidelidade prosódica dentro das possibilidades do sistema fonética do português europeu.
– Mais difícil se poderá tornar a transcrição da vogal da última sílaba. Transcrevê-la pela letra y seria manter a transcrição internacional e não aportuguesar o topónimo, uma vez que essa letra não faz parte das letras fundamentais do alfabeto português (cf. Rebelo Gonçalves, Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, Coimbra, Livraria Editora Atlântida, 1947, págs. 1-5). Assim, a adopção da letra i em lugar de y parece a solução mais adequada na posição da palavra em causa. É que usar a letra e nessa posição seria ter o chamado “e” aberto” que ocorre na sílaba final de horrível. De notar que, mesmo em português europeu, a letra e seria aberta, porque se encontra em sílaba terminada em l, o que impede a sua passagem ao e mudo (por exemplo, o da preposição de).
– Finalmente, se outras línguas europeias omitem o sinal de palatalização, não vejo razão para que façamos de outro modo em português. É claro que a letra final de “Chernóbil” tem pronúncia parecida com a do dígrafo lh, o que nos levaria a pensar na forma “Chernóbilh”. No entanto, acontece que este dígrafo nunca aparece em posição final. Outra opção seria escrever “Chernóbilhe”, que, graficamente, se afasta bastante da transcrição internacional.
De referir que procurei o auxílio do nosso consultor Fernando V. Peixoto da Fonseca, para resolver este problema. Considera ele que a forma “Chernóbil” é um bom aportuguesamento. Com efeito, tanto o dígrafo ch como a utilização do acento gráfico são adequados à transcrição de palavras do russo em ortografia portuguesa.
Por último, cabe aqui lembrar que no Brasil há a tradição de usar tch quando um nome estrangeiro apresenta o som correspondente. É assim que se escreve tcheco, tchetcheno e Tchade. Este uso está já arreigado na norma brasileira, como o demonstra o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, que, embora registe checo e checheno, explicita a sua preferência por tcheco e tchetcheno. É, pois, de prever que no Brasil se escreva “Tchernóbil”, como transcrição do topó[ô]nimo.
Perante os argumentos aduzidos, sugiro que em português europeu se escreva Chernóbil, se não se quiser usar a transcrição internacional “Chernobyl´” ou a inglesa e francesa “Chernobyl”.