Julgo que o consulente já respondeu, de forma sensata e sustentada, às questões por si próprio apresentadas, sendo que concordo inteiramente com o raciocínio exposto a propósito do uso da vírgula e do ponto-e-vírgula nos enquadramentos mencionados.
Por outro lado, devo dizer que me parecem pertinentes as reflexões tecidas, pelo caro consulente, a propósito da evidente escassez de instrumentos reguladores e descritivos ao nível do uso da pontuação — sobretudo (direi eu) no que diz respeito à colocação das vírgulas — no português escrito, o que acaba por desembocar numa «certa anarquia», ou, pelo menos, na sensação da existência de uma «certa anarquia».
A este propósito, atente-se no seguinte exemplo, que me parece paradigmático: uma das instruções de correção dadas pelo Gabinete de Avaliação Educacional (GAVE)1 aos professores corretores dos Exames Nacionais de Língua Portuguesa e de Português (3.º ciclo e ensino secundário, respetivamente) é a seguinte — «é fator inequívoco de desvalorização o facto de, nos itens de construção e de resposta extensa, o examinando não colocar vírgula antes da conjunção coordenativa adversativa mas.» Esta instrução rígida é sustentada nas reflexões tecidas por Lindley Cintra e Celso Cunha, na Nova Gramática do Português Contemporâneo, p. 643: «[...] põe-se uma vírgula antes da conjunção [mas].» Refira-se igualmente que, de acordo com os critérios gerais de correção das provas referentes ao 3.º ciclo, por exemplo, a existência de 2 erros inequívocos de pontuação2 (nos quais se enquadra, de acordo com o GAVE, aquele que estamos aqui a analisar) gera desconto de 1 ponto percentual, sendo que 3 erros inequívocos de pontuação levam ao desconto de 2 pontos percentuais em cada um dos itens de construção, e até 5 pontos nos itens de resposta extensa. Tudo somado, é possível, in extremis, um examinando perder, no contexto de toda a prova, até 19 pontos por não colocar vírgula antes da partícula mas.
Contudo, quando pegamos na Gramática da Língua Portuguesa, de Mateus e outros, e apesar de nada ser dito em termos descritivos a este propósito, reparamos que muito raramente colocam as referidas autoras vírgula antes do conetor mas.
Por outro lado, por exemplo, se analisarmos com atenção os Testes Intermédios (TI) de Língua Portuguesa (3.º ciclo) e de Português (ensino secundário), realizados, respetivamente, nos meses de março e de fevereiro do presente ano letivo, cujos critérios de correção deverão ser, em princípio, exatamente os mesmos dos constantes dos Exames Nacionais, notamos que são apresentados textos nos quais a conjunção coordenativa adversativa mas não é precedida de vírgula:
Exemplos:
1. «O nosso trabalho, aqui, vai prosseguindo, lento mas eficaz [...]» (Mário-Henrique Leiria, Amor Escreve-Se com Água, TI 3.º ciclo)
2. «Compreenderás, querida, quanto me custa o estar tanto tempo separado de ti e dos pequenos mas, quando todos nós sabemos que este esforço culminará na aparição de um mundo melhor em que as águas serão realmente limpas e seguras, a separação torna-se mais suave» (Mário-Henrique Leiria, Amor Escreve-Se com Água, TI 3.º ciclo).
3. «Querida, despeço-me de ti com saudade mas, também, com orgulho» (Mário-Henrique Leiria, Amor Escreve-Se com Água, TI 3.º ciclo).
4. «Asa que se elançou mas não voou...» (Mário de Sá-Carneiro, Quási, TI ensino secundário).
5. «Ânsias que foram mas que não fixei...» (Mário de Sá-Carneiro, Quási, TI ensino secundário).
6. «Das coisas que beijei mas não vivi...» (Mário de Sá-Carneiro, Quási, TI ensino secundário).
Refira-se igualmente que, em ambas as provas, um dos itens de interpretação tem justamente como ponto de partida um dos excertos aqui transcritos:
1. «Estêvão despede-se «com saudade, mas, também, com orgulho.»
Explica estas palavras de despedida.» (TI 3.º ciclo)
2. «Estabeleça a relação de sentido entre o verso "Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim" e o verso "Asa que se elançou mas não voou...".» (TI secundário)
Ora, parece-me ser no mínimo estranho que se exija aos examinandos que coloquem, obrigatoriamente, uma vírgula antes da partícula mas, quando, nos próprios textos que servem como ponto de partida para as respostas pretendidas, não se verifica o respeito por tal regra de pontuação, para já não falar nas opções de linguistas tão conceituadas como Maria Helena Mira Mateus, Ana Maria Brito, Inês Duarte e Isabel Hub Faria, que, como vimos, raramente colocam vírgula em contextos compatíveis com os que aqui analisamos.
Naturalmente que se poderá sempre contra-argumentar, dizendo-se que os excertos transcritos pertencem a textos literários e que, portanto, a chamada liberdade poética assim o permite, ou que, em todos os excertos retirados do texto de Mário-Henrique Leiria, o mas é imediatamente seguido de vírgulas (ainda que a regra estipulada por Cintra e Cunha, op. cit., não refira exceções).
Julgo, porém, que seria avisado e do mínimo bom senso, em provas tão específicas e rigorosas como estas, de âmbito nacional, e que, de certa forma, contribuem para decidir o futuro académico de muitos milhares de estudantes, não correr riscos deste género. Do meu ponto de vista, ou se afasta esta regra, ou, pelo menos, se escolhem excertos que não levantem qualquer tipo de dúvidas e de ambiguidades no que à mesma diz respeito, independentemente de os textos apresentados serem ou não literários.
Dito isto, reitero: concordo em toda a linha com as palavras do estimado consulente, esperando que, futuramente, se venha a pôr alguma ordem nestas coisas da pontuação, nomeadamente em contextos de natureza pedagógica.
1 Gabinete dependente da estrutura do Ministério da Educação português, responsável pela elaboração e aplicação dos instrumentos de avaliação externa (Exames Nacionais, Testes Intermédios, Provas de Aferição...) dos alunos portugueses.
2 «Entende-se por erro inequívoco de pontuação aquele que representa uma infracção de regras elementares ou que afecta a inteligibilidade do texto» (Critérios de Correção do Exame Nacional de Português de 2011, 1.ª chamada, p. 3).