DÚVIDAS

Sobre recursos expressivos em Ulisses

Tento auxiliar um filho que está no 6.º ano e que está a estudar uma obra intitulada Ulisses. Contudo, as minhas memórias sobre recursos expressivos (ou estilísticos?) são vagas. Como classificar:

«O mar que era caminho parecia querer transformar-se em porta que se fechava à sua frente»?

Pretendo também construir-lhe exercícios para fazer em casa, mas gostaria de esclarecer se estes exemplos estão correctos ou não. Em alguns casos, hesito como classificar (ou se poderá mesmo ser classificado). Assim, «E o canto chorava, suavíssimo, violentíssimo» pode servir de exemplo para a metáfora, ou para a antítese?

«Dizem que não ficou pedra sobre pedra» (acerca da destruição de Tróia) — será uma metáfora, ou uma hipérbole (ainda não a estudou)?

«Ulisses uivava para os companheiros: – Parem!» será uma metáfora?

«HOMENS... HOMENS... HOMENS...» pode ser um exemplo de repetição, ou de suspensão da frase?

«Tudo aqui é ciclópico: os animais, as plantas, as pedras...» pode ser um exemplo de enumeração, ou de suspensão da frase?

«Beberam, comeram, ofereceram sacrifícios... Beberam, comeram, dançaram...» pode ser um exemplo de enumeração, ou de repetição expressiva?

Muito obrigada pelo vosso auxílio.

Resposta

Já se disse várias vezes no Ciberdúvidas que a análise estilística de um texto é também uma questão de interpretação, podendo na mesma expressão ou frase ocorrer duas ou mais figuras de estilo. Farei breves comentários a cada exemplo, que se reportam ao episódio das Sereias:

1. «O mar que era caminho parecia querer transformar-se em porta que se fechava à sua frente»

A sequência «parecia transformar-se em porta...» é uma comparação, visto a identificação entre «mar» e «porta» ser feita explicitamente mediante palavras e expressões comparativas («semelhante a...», «como...», «parece...», etc.). Pode ainda considerar que «o mar que era caminho» é uma metáfora, porque a identificação entre os dois substantivos se faz sem a mediação das referidas construções comparativas.

2. «E o canto chorava, suavíssimo, violentíssimo»

Em «o canto chorava», está implícita a identificação entre o som do canto e o som do choro, pelo que se pode considerar que se trata de uma metáfora. Além disso, também é possível afirmar que a expressão encerra uma personificação, por atribuir características humanas ao canto (não é o canto que chora, são as pessoas que o ouvem). Quanto à sequência «suavíssimo, violentíssimo», mais do que uma antítese (simples contraste entre duas realidades), podemos falar de paradoxo, já que «violentíssimo» parece entrar em contradição com «suavíssimo», embora se compreenda que o canto tinha uma tal sedução que exacerbava o desejo.

3. «Dizem que não ficou pedra sobre pedra»

Pode-se interpretar como hipérbole a expressão «não ficar pedra sobre pedra», que é também corrente em textos não-literários. Dizendo que não se sobrepõe nenhuma pedra, sublinha-se o grau de destruição sugerido.

4. «Ulisses uivava para os companheiros: — Parem!»

O verbo uivar torna-se mais expressivo que gritar, porque o sofrimento da personagem é como o de um animal ferido. Esta substituição é realmente uma metáfora.

5. «HOMENS... HOMENS... HOMENS...»

É mesmo uma repetição com suspensão do enunciado.

6. «Tudo aqui é ciclópico: os animais, as plantas, as pedras...»

A consulente não se enganou: é uma enumeração, que gramaticalmente funciona como aposto de «tudo». Não acho que haja suspensão de frase, antes me parece que as reticências marcam a suspensão da série «os animais, as plantas, as pedras...», criando a possibilidade de deixar na indefinição o que pode corresponder a «tudo». Teríamos suspensão de frase se reformulássemos a sequência: «Os animais, as plantas, as pedras... tudo aqui é ciclópico.»

7. «Beberam, comeram, ofereceram sacrifícios... Beberam, comeram, dançaram...»

É como diz: enumeração e repetição.

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