DÚVIDAS

Uma aliteração camoniana e um tique-taque

Nesta estrofe de Os Lusíadas a aliteração da letra d e t são usadas para indicar o tique-taque de um relógio?

Já neste tempo o lúcido Planeta,
Que as horas vai do dia distinguindo,
Chegava à desejada e lenta meta,
A luz celeste às gentes encobrindo,
E da casa marítima secreta
Lhe estava o Deus Noturno a porta abrindo,
Quando as infidas gentes se chegaram
As naus, que pouco havia que ancoraram

Resposta

Em voz baixa ou mentalmente, faça o exercício de pronunciar /t/ e /d/ cadenciadamente, como um tique-taque de um relógio antigo, e verá que o consulente tem razão.
Os quatro primeiros versos dessa estrofe do Canto II d'Os Lusíadas repicam simbolicamente, com a ajuda dos fonemas oclusivos ápico-dentais surdos e sonoros /t/ e /d/, o som de um relógio, pois o próprio contexto da estrofe sugere essa analogia altamente expressiva da transição entre o dia e a noite:
 
Já nesTe Tempo o lúciDo PlaneTa, 
Que as horas vai do Dia DisTinguinDo, 
Chegava à DesejaDa e lenTa meTa, 
A luz celesTe às genTes encobrinDo
 
A sonoridade curta e seca de /t/ e /d/ evocam um movimento rítmico, contínuo de um relógio, que, implacável, acentua a ideia de um processo regular e inevitável, em que o tempo marca de modo preciso a passagem entre a luz e a escuridão.
 
Por isso, o recurso estilístico da aliteração empregada nos quatro primeiros versos amplifica o poder sonoro que têm os fonemas para simbolizar o passar do tempo, criando-se uma atmosfera de transição do dia para a noite.
 
Sempre às ordens!
 
Importante: os relógios de bolso foram inventados por Peter Henlein no início dos anos 1500; provavelmente os grandes navegadores portugueses já usassem tal relógio; no entanto, não podemos garantir com precisão se esse relógio portátil fazia exatamente o som de tique-taque tão característico do relógio inventado em 1656 por Chistiaan Huygens.
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