DÚVIDAS

A construção «tem vindo a» + infinitivo

Na resposta de 12.05.2017 à minha pergunta sobre o tema, o consultor Carlos Rocha falou do valor concessivo da perífrase verbal vir a + infinitivo, talvez porque fosse possível atribuir-lho ao exemplo específico que dei.

Interessava-me, no entanto, o aspecto durativo que somente tem a perífrase no pretérito perfeito composto, mas não no simples, como no exemplo seguinte:

«O Governo detalha esta quinta-feira as medidas para ajudar a aliviar o aumento das mensalidades do crédito à habitação, que têm vindo a escalar devido à subida das taxas de juro do BCE.» (Expresso, 18.09.2023)

É à perífrase no pretérito perfeito composto, com aspecto durativo e sem valor concessivo, que me referia quando disse ser inexistente no português brasileiro. Inexistente também no PB é a construção ter estado a + infinitivo*, quase sempre empregada no PE com a mesma acepção de ter vindo a + infinitivo, do que é prova a possibilidade da seguinte reformulação da citação anterior, sem mudança aparente do sentido:

«O Governo detalha esta quinta-feira as medidas para ajudar a aliviar o aumento das mensalidades do crédito à habitação, que têm estado a escalar devido à subida das taxas de juro do BCE.»

No PB, parece-me que sempre se empregaria ter + particípio. Quando muito, caso se sentisse a necessidade de dar à ação um aspecto ao mesmo tempo durativo e progressivo, usar-se-ia vir + gerúndio. Assim, diríamos:

«As mensalidades têm escalado.»

«As mensalidades vêm escalando.»

Uma busca ao Corpus do Português, do Mark Davies, encontrou resultados que, à primeira vista, confirmam a minha hipótese de se estar diante de inovação do PE, e não anterior ao século XX, já que não há ocorrências do mesmo tipo de construção com idêntico aspecto durativo antes do século passado, com a possível exceção da seguinte, extraída de Os Gatos:

«[...] que é isto, senão assentar cúpula infame num edificio d'estimulos condenáveis, que as pobres têm vindo a sentir levantar-se dentro delas (mercê das causas que atrás pus) e que às propensas dará a noção de que a formosura é uma coisa que publicamente toma o passo à virtude (...)» (Os Gatos, de Fialho de Almeida)

Diante do exposto, pergunto: que sentidos específicos têm ter estado a + infinitivo e ter vindo a + infinitivo (sem o valor concessivo de vir a + infinitivo) que faltariam a ter + particípio e a vir + gerúndio, considerando que as duas últimas construções também não são estranhas ao PE e são compartilhadas com o espanhol, nas mesmas acepções?

Grato pela atenção.

* Existe a construção que seria de esperar, no PB, como equivalente à do PE, i. e., ter estado + gerúndio, mas é, no caso do PB, evidente decalque do inglês, encontrável apenas no PB escrito, em textos de estilo comparável ao daqueles em que se encontram construções como ir (presente ou futuro do indicativo) + estar (infinitivo) + gerúndio.

 

Resposta

O valor aspetual de vir a + infinitivo é geralmente classificado como resultativo, enquanto a estar a + infinitivo se associa geralmente o valor durativo.

Relativamente à diferença nos usos europeu e brasileiro, nota-se de facto que em textos brasileiros é rara ou nula a ocorrência da construção vir a + infinitivo com o auxiliar no pretérito perfeito composto (ver Corpus do Português, de Mark Davies). De acordo com as fontes disponíveis, não é aqui possível explicar este contraste; o mais que se consegue é constatar o que foi dito na resposta em causa: em textos do século XX, «ter vindo a» é característico dos textos do português europeu.

Já quanto a ter estado a + infinitivo é de esperar que esta forma da construção, com o auxiliar no pretérito perfeito composto, só ocorra no padrão linguístico de Portugal, visto que no Brasil a perífrase se construiria com gerúndio («ter estado fazendo», por exemplo). E com efeito assim é, porque, consultando novamente o Corpus do Português, apenas uma ocorrência abona «ter estado a» + infinitivo numa frase de Erico Veríssimo, que talvez tenha recorrido a esta construção por razões estilísticas, para evitar a proximidade entre gerúndios:

(1) «Toríbio entrou naquele momento. Tinha estado a esconder a cavalhada. – Está chegando a hora... – disse, pegando a cuia que o dono da casa lhe oferecia. Um minuto depois, saíram» (Erico Veríssimo, O Tempo e o Vento, parte 2, tomo 3, 1961).

Em todo o caso, é de assinalar que na secção histórica do Corpus do Português são raras as ocorrências dos tempos compostos na perífrase de estar + gerúndio.

Vir a + infinitivo é uma perífrase verbal que se encontra descrita por Celso Cunha e Lindley Cintra, que a consideram construção empregada «para expressar o resultado final da ação» (Nova Gramática do Português Contemporâneo, Edições João Sá da Costa, 1995, p. 395), abonando-a com o seguintes exemplos: «Vim a saber dessas coisas muito tarde», «Veio a dar com o burros na água».

Paul Teyssier não se afasta desta interpretação, afirmando que esta construção «insiste no termo da ação»  (Manual de Língua Portuguesa. Portugal-Brasil, Coimbra Editora, 1990, p. 315).

Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, 2003, p. 233) converge com os autores antes citados, quando inclui «vir a escrever» entre os auxiliares que exprimem resultado, mas acrescenta ainda (mantém-se a ortografia do original consultado):

«Vir a + infinitivo de certos tem quase o mesmo sentido do verbo principal empregado sozinho: Isto vem a traduzir a mesma idéia (= isto por fim traduz a mesma idéia). Vir a ser pode ainda ser sinônimo de tornar-se: Ele veio a ser famoso

Num estudo linguístico dedicado aos verbos auxiliares aspetuais, Henrique Barroso integra a perífrase de vir a + infinitivo num conjunto de auxiliares que constituem uma categoria aspetual que ele denomina de «categoria aspetual da colocação», a qual «assinala a relação de uma acção com outra (ou outras) acção(ões) do contexto» (O Aspecto Verbal Perifrástico em Português Contemporâneo. Visão Funcional Sincrónica, Porto Editora, 1994, p. 137). O caso concreto de vir a + infinitivo define, com chegar a + infinitivo, uma subcategoria, «a disposição resultante», que «indica que a acção verbal se apresenta como um resultado relativamente às acções não 'consideradas' anteriormente» (ibidem, p. 145).

Em vir a + infinitivo, a preposição terá valor télico – Gramática do Português (Fundação calouste Gulbenkian, 2013-2020, p. 1275). É uma construção que só admite o infinitivo e exclui o gerúndio, mesmo nas variedades brasileiras (ibidem, pp. 1274/1275). Parece alinhar assim, com verbos como começar, passar, chegar, voltar e tornar que selecionam a télico, ao contrário de estar, ficar, continuar e andar, que selecionam outro tipo semântico de a, o de valor aspetual durativo, e formando uma construção de infinitivo preposicionado (ibidem, p. 1275).

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