Conforme as inúmeras respostas aqui apresentadas sobre esta questão recorrente, a tradição gramatical recomenda o ter de como a forma mais correcta para veicular uma ideia de obrigação, uma vez que integra uma locução verbal que visa transmitir um dado valor.
Esta estrutura tem a seu favor o facto de ser constituída por um verbo auxiliar, uma preposição e o verbo principal, muito próxima (estruturalmente) de outras como «estar/andar + a + verbo no infinitivo», que veicula uma ideia de continuidade, como em «estou/ando a ler um livro».
Porém, a expressão ter que é hoje tão usada quanto ter de para veicular a mesma ideia de obrigatoriedade ou dever. Esta construção parece trazer, todavia, problemas de classificação dos elementos que a constituem, não sendo fácil explicar a presença do que, que não é pronome, mas também não é conjunção. Talvez no sentido de explicar este problema, no Dicionário Houaiss, diz-se que em «ter que trabalhar» o que sofre uma certa alteração de classe gramatical, adquirindo valor prepositivo.
Como conclusão, creio que não é possível, hoje, erradicar nenhuma das expressões, sendo ambas consideradas correctas. Apesar disso, creio que a expressão ter de é a mais conservadora, por manter as regras estruturais da língua. Nesse sentido, e porque a norma é, por princípio e por necessidade, conservadora, poderemos atribuir a ter de um valor mais formal, devendo, eventualmente, ser preferida numa linguagem cuidada.
A título de curiosidade, registe-se, todavia, que a coexistência das duas formas ter de e ter que como auxiliares de uma locução verbal seja com sentido de dever, obrigação ou possibilidade, ou como relativo sem antecedente subentendendo-se algo, alguma coisa, é já muito antiga na língua portuguesa. Transcrevo quatro excertos de obras do século XVI, a que tive acesso através do "corpus" do Português disponível em http://www.corpusdoportugues.org, que demonstram a convivência das duas formas, em estruturas equivalentes:
«Estando o P.e Gaspar Coelho nas terras de Dom Bartholomeo cultivando aquella christandade, lhe mandou Yoxisanda hum recado dizendo que, por ter que fallar com elle algumas couzas de muita importancia, as quaes lhe não podia comunicar por recados estando auzente, lhe pedia que com brevidade possivel fosse a Cuchinoçu e se passasse da outra banda do mar do Tacacu…»
Frois, História do Japão 2, 1560-1580
«E vergonha havias tu de ter de me alegrares com o santo Asclas, lembrando-te do que passaste com ele, quando não podias passar o rio.»
Manuel Bernardes, Nova Floresta, 1688
«a justiça não parece a verdade é desterrada e a mentira honrada o que agora mais merece esse há menos soldada a meu pai ouvi dizer […] nunca me há de esquecer: quem quiser ter de comer que nunca fale verdade senão sempre à vontade do senhor com quem viver.»
Gil Vicente, Obra Completa, Séc. XVI
«além desta injúria que lhe fazia, sabia tanto que secava os rios e tolhia as novidades não serem boas, tudo a fim dele não haver tanto tributo do reino como soía, pera não ter que dar àqueles que o serviam fielmente, e ele se levantar com o reino. El-Rei, com estas e outras fábulas indinado contra o filho, tirou-lhe as rendas que lhe dava pera se manter…»
João de Barros, Décadas da Ásia, séc. XVI
Edite Prada