Considera-se mais correto «ter de (fazer)», no sentido de «ter a obrigação de (fazer)», argumentando-se que «ter que (fazer)» é outra construção com significado próprio: «ter alguma coisa que (fazer)» ou «ter alguma coisa para (fazer)». Deve reconhecer-se, porém, que, no uso, ocorre muitas vezes «ter que (fazer)» com valor de obrigação, apesar da censura normativa. E sabemos que essa construção aparece em textos dos escritores clássicos do século XIX (por exemplo, Alexandre Herculano) e mesmo antes.
Acerca dos juízos dos autores normativistas do século XX sobre a construção «ter que», mencione-se o caso de Vasco Botelho de Amaral (Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, 1958), que dizia que empregar «ter que» em lugar de «ter de» era prática que «à nossa sintaxe repugna», rejeitando a alegada confusão, porque, em «ter que», a forma que era pronominal, conforme se lê a seguir (mantém-se a ortografia original):
«[...] Ter de emprega-se correctamente, quando se subentendem palavras como necessidade, precisão, desejo, obrigação, antes da partícula de. [...] Muitas vezes cai-se na incorrecção de escrever: "tenho que ir" por tenho de ir, erros provenientes da analogia que se estabelece entre frases do tipo "tenho que fazer" e "tenho de fazer isto ou aquilo". O professor Augusto Moreno citou exemplos de construções como ter que fazer alguma coisa (em vez de ter de...) na escrita de Vieira e Castilho. Não devemos, porém, imitar esses autores, visto que à nossa sintaxe repugna a prática seguida por eles em tal caso. [...] Observe-se a viciosa construção em Herculano: "Temos que dar à unha até o serão" (O Monge de Cister, pág. 289, I). Melhor fora – temos de dar. [...] Queremos acentuar que, além dos exemplos referidos por Augusto Moreno, temos nós apontado mais um ou outro, vicioso como o que demos de Herculano. Por exemplo: "Não tens que agradecer-mo" (Castilho, A Noite do Castelo, pág. 82, ed. 1907). Continuamos, porém, a achar reprovável o ter que por ter de [...].»
Rodrigo de Sá Nogueira, no seu Dicionário de Erros e Problemas de Linguagem, era menos perentório em relação a «ter que» = «ter de»:
«Ter de Ter que. Ter a – A respeito das duas primeiras expressões, escrevi nas minhas Questões de Linguagem, I, 207 (2.ª ed.):
"Ter que emprega-se em frases como tenho que fazer, que é elíptica por tenho alguma coisa que fazer, onde o que é um pronome relativo, cujo antecedente é, clara ou ocultamente, coisa. – Ter de emprega-se em frases como tenho de fazer alguma coisa, que é também elíptica por tenho necessidade de fazer alguma coisa, onde o de é uma preposição que precede o substantivo verbal fazer. – Não obstante ser bem clara a distinção existente entre as duas expressões, há uma tendência muito acentuada para só se empregar a primeira, quer numa, quer na outra acepção. Assim, diz-se hoje correntemente: tenho que fazer alguma coisa, construção que os meticulosos evitam. (Cfr. Dr. Leite de Vasconcelos, Lições de Filologia Portuguesa, 2.ª ed.) [...]»
É curioso observar que, enquanto Botelho de Amaral condena «ter que» com sentido de obrigação, Sá Nogueira (que muitas vezes defendia com inflexibilidade as suas posições) não parece encarar o uso de «ter que» em lugar de «ter de» como um erro claro, deixando certa tolerância para com uma construção que, no português contemporâneo, já só os «meticulosos» (como ele dizia) tratarão de devolver à correção.
Curioso é igualmente detetar a ocorrência de «ter que» com valor igual ou semelhante a «ter de» em usos escritos anteriores ao século XIX:
1.«Naõ tendes que desviar disso o pensamento, por que haueis de ser freira» (Maria do Céu, Rellação da Vida e Morte da Serva, 1721, in Corpus do Português)
2. «Folguei de ver as cartas que desta terra se mandaram a Roma: sobre a pessoa a quem foram mandadas, tenho que dizer a V. Ex.ª uma cousa bem rara que cá soube» (P.e António Vieira, Cartas 1626-1692, idem).
3. «Tambem veo muito a propósito para me fazer ser breve, ainda que vá contra o que devo, como diz o nosso Camões; mas quanto é para o que eu tenho que vos dizer, o menos é o melhor» (D. Francisco Manuel de Melo, Cartas, 1646, idem).
As atestações apresentadas permitem supor que já tem alguns séculos a tendência para empregar «ter que» a marcar necessidade ou obrigação. O que que ocorre nestes três exemplos não é pronominal nem pode ter a função de complemento direto, porque esta função já é exercida por expressões nominais: em 1, «o pensamento»; em 2, «uma cousa bem rara que cá soube»; em 3, «o que». Sendo assim, a interpretação mais plausível dessa partícula é a de que ela ocorre a ligar o auxiliar ao verbo principal («ter que» + infinitivo), tal como acontece com de em «ter de» + infinitivo.