Miguel Faria de Bastos - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Miguel Faria de Bastos
Miguel Faria de Bastos
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Miguel Faria de Bastos  é advogado  (Angola/Portugal),  estudioso de Interlinguística (v.g., Esperanto e Esperantologia).

 
Textos publicados pelo autor
Vícios de linguagem... mediática
Tempos verbais desfasados, modismos e anglicismos a eito

Leis que ainda iam ser votadas tituladas como se já  tivessem sido aprovadas, uma manifestação no dia seguinte descrita como «grandiosa», o modismo focar (e foco), o neologismo (inventado no Brasil) antenar e a proliferação de anglicismos com tradução já em português. E, ainda, o emprego  diversificado de trabalho e de  trabalhista.

Texto adaptado de um comentário do autor para advogados estagiários em Angola, no quadro dum patrocínio de estágios – vertente: terminologia e retórica forenses.

A expressão «ser presente a tribunal»
De uso controverso na comunicação social

«Ser presente a tribunal (ou a um juiz)» é uma expressão de uso corrente nos media portugueses sobre casos de justiça. Estara ela correta? É o que analisa  neste apontamento o advogado luso-angolano Miguel Faria de Bastos.

Pergunta:

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea publicado em 2001 pela Academia das Ciências de Lisboa, «procedimento cautelar é o mesmo que providência cautelar».

A extensa explicação que vem no Dicionário Jurídico de Ana Prata (Volume I, Almedina, Maio de 2006) parece indicar que procedimento cautelar e providência cautelar são duas coisas distintas. Concretamente, procedimento cautelar é um requerimento apresentado a um juiz para que este emita uma providência cautelar. Só é emitida uma providência cautelar depois do juiz assegurar-se da plausibilidade da existência do direito do requerente.

O mesmo Dicionário Jurídico define «providências cautelares como medidas decretadas pelo tribunal nos procedimentos cautelares».

Agradecia um esclarecimento.

 

N. E. – Manteve-se a ortografia seguida pelo consulente, a qual é anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

Resposta:

Procedimento cautelar e providência cautelar são dois termos ou conceitos  jurídicos distintos, embora o segundo possa fazer parte do primeiro.

A confusão a respeito destes dois conceitos vê-se, com relativa frequência, nos órgãos de comunicação social. Advogados e outros juristas em fase inicial ou sem grande maturidade podem também incorrer nessa confusão.

Não está certo dizer-se que o procedimento cautelar é um requerimento, embora sempre comece por um requerimento, chamado requerimento inicial. O procedimento cautelar, por sua vez, ou termina com uma providência cautelar -- medida preventiva coincidente, no todo ou em parte, com o pedido feito no dito requerimento inicial -- ou termina com uma decisão denegatória da providência cautelar requerida, salvo desfecho estritamente processual (não de mérito) que se traduza em efeito idêntico a este (v.g., desistência do procedimento cautelar pelo requerente).

O procedimento cautelar pode assim, simplificadamente, definir-se como um conjunto encadeado de trâmites ou atos processuais (das partes, da secretaria, dos magistrados, das testemunhas, etc.), cujo início é um requerimento inicial e cujo final é uma providência cautelar ou uma decisão denegatória da providência cautelar requerida, salvo desfecho traduzido em efeito idêntico ao duma denegação do pedido.

O procedimento cautelar visa prevenir  a lesão iminente,  irreversível ou dificilmente reversível, dum direito ou dum  interesse juridicamente protegido inserido na esfera jurídica de determinada pessoa, física ou jurídica, através dum meio processual acessório (v.g., um arresto ou um arrolamento), por isso não designado como processo, destinado a correr por apenso dum processo principal próprio para defesa definitiva de tal direito ou interesse.

Compreende-se que mesmo os dicionários por vezes errem. O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea<...

Pergunta:

Gostaria de saber qual é a relação entre juízo e julgamento, em que situações é que as duas palavras são sinónimas.

Tinha ideia de que a palavra juízo dizia respeito, em geral, à avaliação da qualidade de uma coisa (sob uma perspectiva moral ou outra) e à opinião que dela se forma e que julgamento diria respeito ao processo jurídico e à sentença que dele resultaria. No entanto, tenho reparado que muita gente usa a palavra julgamento com o sentido de juízo referido atrás, mas nunca o contrário.

À primeira vista pareceu-me que esta troca de significados estaria relacionada com a tradução de inglês para português através da proximidade gráfica e fonética (tradução de judgment para julgamento em vez de juízo) como acontece com as traduções de luxury para luxúria em vez de luxo, library para livraria em vez de biblioteca, port para porta em vez de porto, entre outras.

Fiz uma pesquisa superficial pela Internet e fiquei ainda mais confuso quanto ao significado das duas palavras (e ainda se complicou mais quando juntei os verbos julgar e ajuizar na mistura), por isso, agradeço qualquer esclarecimento.

Resposta:

Juízo em linguagem jurídica lusófona tem dois significados. Um significado é o de «tribunal», enquanto órgão do Poder Judicial. Aplica-se frequentemente o termo Juízo com este significado  quando um Tribunal de  Comarca (1.ª instância) é realmente um feixe de tribunais (acontece nas grandes cidades). É o que acontece em Portugal e em quase todos os  Países lusófonos. Destaque-se um detalhe: alguns anos após a independência, em Angola, os tribunais da mesma comarca passaram a chamar-se Tribunais Provinciais. Luanda, por exemplo, tem,  legalmente,  um  único tribunal provincial,  que,  no entanto, por sua vez,  está  de facto dividido em plúrimos tribunais chamados Secções. Agora,  há um  Tribunal Cível e  Administrativo,  com quatro Secções  que são  verdadeiros tribunais distintos,  um Tribunal de Família,  um Tribunal Laboral,  um Tribunal Criminal,  todos  divididos  em Secções, correspondendo cada Secção a um verdadeiro tribunal com um a três juízes (há no entanto uma mesma secretaria para cada Secção). No período colonial e numa primeira fase pós-independência, os tribunais cíveis da Comarca de Luanda eram designados como Varas Cíveis e os Criminais como Juízos Criminais. Sabe-se que, com a nova reforma judiciária, será recuperado em Angola o termo Juízo aplicado a um tribunal integrante de um feixe de tribunais da mesma comarca.

Outro dos significados de juízo é «Justiça», enquanto sistema judiciário no seu conjunto. É comum dizer-se «levar o caso a juízo», ou «demandar alguém em juízo».

O termo juízo nunca aparece com o significado de «julgamento» ou de «prolação de sentença», como na expressão  bíblica «Juízo Final».

A pal...

Pergunta:

A propósito do caso da jovem imigrante sem-abrigo que abandonou o filho recém-nascido num contentor do lixo [em Lisboa], ouvi o  termo adoptabilidade que, confesso, desconhecia (nem se encontra dicionarizado), mas que creio faz parte do léxico jurídico: [suponho que] "adaptabilidade", no sentido do processo legal para a adoção do bebé*.

Ou seja: qual a diferença entre adoptabilidade e adoção, e em que  registo se usa um e outro?
 
* in Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo Anotada, de Paulo Guerra.

Resposta:

Adotabilidade (adoptabilidade, antes do Acordo Ortográfico de 1990) é a possibilidade  ou capacidade de alguém (menor)  ser  adotado (adoptado, antes do AO-90) ficando, por via da adoção (adopção, antes do AO-90), com um estatuto jurídico total ou parcialmente igual ao dum filho natural, inclusive para efeitos sucessórios[1].

Esta última é a definição jurídica que sinteticamente dou. Claro que se podem adotar medidas, atitudes, comportamentos, ideologias, filosofias, etc. e também adotar um animal de estimação em sentido análogo corrente.

E há ainda o substantivo adaptabilidade, que é a possibilidade  ou capacidade de alguém (ou algo) se adaptar a alguém ou a algo, se tornar «apto» para algo.  Segundo o Acordo Ortográfico de 1990 (AO-90), aqui o p não caiu, porque se lê, inclusive no adjetivo adaptável. O conceito não é jurídico.

 

[1 No Brasil, as palavras adotar e adoção já não se escreviam com p antes da entrada em vigor do AO 90, em 2009.]