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A língua viva

A semana passada dediquei algumas linhas sobre a crise brasileira. Como é meu hábito, não tive nenhuma vontade de fazer um tratado sério e profundo sobre o que quer que seja. Não sou historiador ou sociólogo, sou apenas um reles e vulgar cronista que escreve neste centenário jornal quase por favor (não se surpreenda se um dia encontrar neste meu espaço o horóscopo ou a meteorologia).

Surpreendentemente (afinal, há quem leia esta minha coluna além de mim e de você), fui inundado de cartas e e-mails, os mais contraditórios possíveis. Desde de brasileiros e portugueses, que entenderam a ironia do meu texto, até brasileiros que se sentiram molestados pelo tom cómico com que tratei o Brasil.

Não era a minha intenção ofender quem quer que seja. O problema é que, sendo português por opção e brasileiro de alma, nascimento e coração, exerço a minha cidadania com alguma leveza. O meu passaporte é para mim apenas um documento burocrático, não um contrato que me exija um comportamento padrão de patriota enraivecido defensor da nação.

Disse na semana passada e repito: adoro o Brasil. Mas adoro o Brasil que sabe rir-se de si mesmo e que não quer ser a Suíça (perdoem-me os suíços, mas o Brasil é um país um bocadinho mais divertido).

Uma leitora brasileira declarou-se irritada pelo facto de a minha crónica utilizar expressões portuguesas. Na sua (pouco) modesta opinião, é um delito grave um brasileiro adaptar a sua linguagem à do país onde vive. Esta leitora acusa-me de ser puxa-saco (lambe-botas) dos portugueses só porque escrevo coisas como "tipo", "se calhar", "casa de banho", evito os gerúndios e fico feliz quando acerto na localização dos pronomes e na declinação dos verbos. Tendo em vista que regularmente recebo críticas de leitores lusos que acham o meu português uma lástima (o que, de resto, não está longe da verdade), sinto-me num território de ninguém. Aparentemente consigo desagradar aos membros mais radicais das duas facções que reivindicam o espólio de Camões e de Machado de Assis.

Desde muito cedo aprendi que a língua é viva. Talvez os meus professores fossem anarquistas e quisessem destruir tanto o Brasil como Portugal através da fala e da escrita. Cresci a acreditar que as vírgulas não foram feitas para envergonhar ninguém, que os acentos são apenas sinais gráficos a tentar simular a linguagem oral e pior do que escrever errado é ser analfabeto de pai e mãe. Diga-se, de passagem, que é o que eu sou. Os meus pais mal sabem assinar o próprio nome. O que não os impediu de me pagarem os estudos e de me ensinarem a tratar da minha vida em vez de ficar a controlar a língua dos outros.

Quando era miúdo sonhava em ser astronauta ou futebolista, nunca imaginei que pudesse ganhar a minha vida a escrever. Deus, que escreve certo por linhas tortas (até ele!), castigou-me transformando-me num inepto num sem-número de coisas. Inábil no futebol e morando longe da NASA, acabei com um lápis na mão. Fiz escola de jornalismo e empreguei-me numa agência de publicidade a redigir reclames.

De certa maneira, passei os últimos 15 anos da minha vida a tentar aprender a escrever. Como todo o farsante, de vez em quando, acredito na minha própria mentira. Passo longos períodos a pensar que Fernando Pessoa e Carlos Drumond de Andrade são meus pares, que são meus companheiros, só porque tive a sorte de nascer num país lusófono. Ainda bem que há sempre um purista de plantão, a lembrar-me que pela maneira como escrevo deveria era trabalhar na estiva.

Uma vez, Caetano Veloso (que, como todos os bons poetas modernos, costuma tratar a língua aos pontapés, criando neologismos indecifráveis e metáforas malditas) escreveu que se se tem uma boa ideia o melhor é fazer uma canção, pois está mais do que provado que só é possível filosofar em alemão. Caetano é génio e errado eu sou. A partir da próxima semana vou escrever as minhas crónicas em javanês. É provável que então ninguém mais repare nos meus pobres raciocínios e nos meus erros de sintaxe. A não ser, é claro, que o Diário de Notícias passe a ser distribuído em Java.

Ou como diria o meu Tio Olavo: "O universo é uma bela obra. O ser humano trata-se apenas de um pequeno erro na revisão."

Fonte

Artigo publicado no jornal português Diário de Notícias do dia 14 de Fevereiro de 1999.

Sobre o autor

Edson Athayde (Rio de Janeiro, 1966) é um publicitário brasileiro radicado em Portugal desde 1991. Foi vice-presidente da agência Young & Rubicam Portugal em 1993 e em 1995 foi o responsável de marketing do governo socialista de António Guterres. Até 1998, foi administrador do Diário de Notícias e, a partir daí, tornou-se presidente da FCB – Foote, Cone & Belding Portugal. É diretor do departamento criativo da empresa Olgivy desde 2005 e, dos seus vários livros sobre publicidade e marketing, destaca-se A Balada do Yupiie Louco (1997).