DÚVIDAS

À volta de gripar, engripar e engripado

[...] [T]enho um outro comentário a fazer [sobre a forma engripar]: [...] à forma "gripar" (com remissão no Houaiss a "grimpar") corresponde o étimo francês "gripper" (na acepção de mecânica), no entanto, o mesmo, bem como outros dicionários — o Priberam, por exemplo — apresentam o verbo gripar como produto de uma formação portuguesa (mesmo se a palavra primitiva tenha entrado na língua portuguesa através de um empréstimo ao francês grippe, atestado em português desde 1881), sendo constituído por gripe+ar, um derivado sufixal, portanto é homónimo do primeiro (por isso mesmo têm direito a entradas diferentes). A forma gripar na acepção de «provocar ou ficar com gripe» é atestada pelo menos desde 1942 e o seu particípio, grippado (sic), desde 1928, como nos informa o Houaiss.

Quanto a engripar, foi-lhe acrescentado o prefixo en- à forma já existente gripar (de gripe+ar e não de gripper), sendo por isso decomposto em: en-+ a base gripe +sufixo -ar, tendo, então todas as características para ser um derivado parassintético, embora me custe a compreender, pelas razões já anteriormente expostas e que conto com a vossa magistral ajuda para a sua resolução.

Ainda a propósito deste tema, teria uma outra pergunta (de resposta bem mais fácil, segundo creio).

Na vossa primeira explicação à minha questão, que remetia então a engripado, foi-me dito que este era "apenas" o particípio passado de engripar, e que engripar, esse sim, teria sido formado parassinteticamente. Mas, seguindo essa lógica de raciocínio, deveríamos responder também que engripar é o infinitivo impessoal. Ambos têm a marca da desinência do tempo verbal a que pertencem: engripado- ado, do lat.-atu, engripar - ar, do lat -are, forma do infinitivo dos verbos da primeira conjugação.

Por último gostava de vos pedir um conselho para uma obra de referência acerca das regências verbais e nominais que não fosse uma gramática.

Um grande bem-haja a toda a vossa equipa por todo o excelente trabalho que tem vindo a realizar.

Resposta

1. Na verdade, em português europeu, os verbos homónimos gripar, «causar/contrair gripe», e gripar, «avariar devido a peças que aderiram fortemente por falta de lubrificação», têm ambos origem no francês grippe, mas com histórias diferentes. Enquanto gripar se relaciona indirectamente com a palavra francesa, sendo variante de engripar, derivado denominal de gripe (do francês grippe), gripar é adaptação directa do francês gripper, cuja base é grippe. É o que se conclui da consulta não só dos dicionários referidos pela consulente, mas também do Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, e do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa.

2. Note-se que a lexicografia brasileira aponta algumas diferenças em relação ao uso português. Com efeito, a forma engripar, «causar/contrair gripe», é assinalada como lusismo (cf. Dicionário Houaiss e Dicionário Unesp do Português Contemporâneo), registando-se gripar como forma sinónima usada no Brasil (cf. Aulete Digital). Em contrapartida, engripar é equivalente a «avariar...».

3. Voltando ao âmbito do português europeu, a relação de engripar, «causar/contrair gripe», com a sua variante gripar, poderia levar a supor que a primeira forma não fosse um derivado parassintético, mas, sim, uma palavra prefixada cuja base seria gripar. Alina Villalva ("Formação de palavras: afixação", in M.ª H. Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, 2003, pág. 952-955) propõe que verbos como engriparencaracolar, engravidar  ou enquadrar  — possam coexistir com formas não prefixadas — respectivamente caracolar, gravidar, quadrar —, às quais se confere frequentemente o estatuto de regionalismo ou arcaísmo. Desta descrição parece inferir-se que em português europeu engripar é palavra parassintética, dando-se à variante gripar um estatuto marginal, pelo menos, em relação à norma europeia.1  

4. Quando se fala de derivados verbais, traz-se para a análise o infinitivo impessoal, que constitui o lema pelo qual o item verbal é reconhecido, considerando-se que outras formas, como o particípio passado, ocorrem em virtude da flexão. Sendo assim, analisa-se engripado como particípio passado, formado pela adjunção do sufixo flexional -do ao tema verbal engripa-, e não como adjectivo parassintético, à semelhança de ensonado, caso em que realmente ocorre um sufixo -ad(o/a) (cf. Alina Villalva, op. cit., pág. 952, n. 9).

5. A respeito das regências verbais e nominais, são de referência duas obras de Francisco Fernandes, o Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos e o Dicionário de Verbos e Regimes. São igualmente de mencionar o Dicionário Prático de Regência Verbal, de Celso Pedro Luft.

 

1 A rigor, casos como os de engripar, encaracolar, engravidar correspondem a um tipo de derivação parassintética, no qual a adjunção do prefixo é concomitante da derivação de um verbo a partir de um radical adjectival ou nominal (Villalva, op. cit, pág. 955). Considera-se que há conversão em engripar porque o radical nominal de gripe, grip-, converte-se em radical verbal ao qual se associa a terminação flexional (a vogal temática -a e a desinência de infinitivo -r).

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