As palavras estrangeiras, entendendo por estrangeiras as que, não sendo portuguesas, não são contudo gregas nem latinas (ou árabes?), são de três espécies:
a)As que são absolutamente estrangeiras e ou não susceptíveis de nacionalização (como whisky, kirsh, que são paralelas, na matéria, a apelidos estrangeiros e aos nomes de terras estrangeiras que não tiveram nome latino ou grego como o são às citações em língua estrangeira, que haja necessidade de fazer), ou podendo talvez ser nacionalizadas, não há mister que se nacionalizem, por termos vozes portuguesas que perfeitamente lhes correspondem (como club, que em português é grémio. (lunch que é merenda, menu que é ementa).
b)As que são, apesar de estrangeiras, susceptíveis de tomar forma portuguesa, como se fossem portuguesas, e há vantagem em que a recebam, por isso que não temos vozes próprias que exprimam o que elas dizem (como fanar, que não é bem murchar, detalhe que não é bem pormenor, e outras assim).
c)As que, sendo absolutamente estrangeiras, e portanto insusceptíveis de nacionalização, correspondem contudo a coisas que convém designar por vozes portuguesas, criando-as para esse fim. (Tal é, por exemplo, a voz inglesa football, que designa uma coisa que convém que tenha um nome português, como bola-pé, ou coisa parecida).
Club é um grémio recreativo; menu é uma ementa de comidas; lunch é uma merenda breve. Ora club em inglês quer dizer grémio; menu, em francês, quer dizer ementa; lunch em inglês é precisamente merenda (mas breve).
Sport, quer dizer ludo?
...
Os peregrinismos, sendo coisas externas à língua, não podem ser nacionalizados. Por isso se escreverá club, film, football, whisky, assim mesmo, e sem itálico, como se citássemos e não escrevêssemos português.
Querendo nacionalizar atenda-se a que waggon = carrão.
Este problema, porém, é da propriedade da linguagem, e já não da ortografia da língua.
...
Dá bem a medida da estupidez verbal em que caímos que achamos natural a expressão wagon-lit, ao passo que riríamos de carrão-dormitório, carro-dormitório, carro-cama ou da expressão preferível, lectífero (porta-leitos).
Se quisermos positivamente dar ao carrão de via férrea um nome distintivo — pois que carrão designa já uma carroça grande, (...) — então forjemos, para esse fim distintivo a voz legítima carrete, e fique ela designando sem dúvida o chamado waggon de via ferro.
carrete = waggon
caminhão = camion
caminheta = camionette
noctivolo:
aerovolo, ou
velivolo, ou
avião (avieta) = aeroplano
aquivolo --------- = hydroplano
...
O nacionalismo é um patriotismo activo. Pretende defender a pátria das influências que possam perverter a sua índole própria, venham essas influências de dentro, como certos regionalismos, venham de fora, como certos estrangeirismos ou internacionalismos. Há porém regionalismos que não só são inofensivos mas proveitosos à nação; há também influências estrangeiras e internacionais que são úteis e aproveitáveis. O caso é que umas e outras sejam assimiladas, isto é, convertidas na substância da índole nacional.
Um exemplo, tirado do campo concreto da linguagem, tornará inteiramente claros estes conceitos que, por abstractamente postos, são necessariamente pouco perspícuos.
No Norte, ou pelo menos, no Minho, chama-se loquete ao que em português geral se chama cadeado. Não resulta senão desvantagem de admitirmos esse sinónimo inútil (...) e obscuro para o Português em geral, no uso corrente da língua comum, falada ou escrita. É, em miniatura, o caso do regionalismo anti-nacional. No Alentejo e no Algarve pronuncia-se ên o EN que fora dessas regiões pronunciamos ân. Se se pudesse introduzir este hábito na linguagem falada de nós todos seria uma vantagem, pois não há senão desvantagem em que EN se pronuncie do mesmo modo que AN, de sorte que surja confusão absurda entre, por exemplo, sanha e senha. É este, em miniatura, o caso do regionalismo nacional.
Certas palavras estrangeiras —como football e soirée— são internacionais, pois que em todas, ou quasi todas, as línguas se empregam em sua forma original, sem tradução. Temos o caso do internacionalismo anti-nacional. Contrariamos a índole da nossa língua introduzindo nela termos estrangeiros, que forçosamente desfeiam o discurso; contrariamos a índole da sua pronunciação, pois ou o leitor os pronuncia bem e está falando outra língua em meio do português, isto é, está falando duas línguas ao mesmo tempo, ou os pronuncia mal e se dá o mesmo caso, com ainda maior fealdade. O critério nacionalista é o de empregar o termo legitimamente português para a palavra internacional, ou simplesmente estrangeira, que, por haver já esse termo, inútil e desproveitosamente emprestámos; e fabricar uma palavra nova, de índole bem nossa, para a palavra estrangeira de que não tivéssemos equivalente. Assim, nos dois casos do exemplo, diríamos velada (que já tínhamos) em vez de soirée, e para football fabricaríamos bolapé, pedibola ou coisa parecida.
Quando porém a palavra internacional, ainda que de origem estrangeira, se integra naturalmente na nossa índole e o seu uso corresponde a uma necessidade cultural, seríamos anti-nacionais se proscrevêssemos o seu emprego. Recusar-nos-emos a nos servir da palavra neurastenia, porque a devemos ao médico americano Beard? Repugnaremos a palavra (...)
...
Imagine o leitor que, referindo-se a um grupo de gente aparentemente alegre e foliona que afinal induziria ao tédio, o Diário de Notícias dizia, em fundo, «Esta malta de rambóias não produz senão chatice». Que entenderia nisto o leitor descaloado? Que um extracto de malte, obtido pela decocção das folhas de uma árvore chamada rambóia, produz simplesmente qualquer espécie de emagrecimento, presumivelmente a cura da obesidade.
Em iguais circunstâncias interpretativas se encontra a maioria dos ingleses perante o fraseado dos periódicos americanos, e mormente dos que se destinam aos grandes públicos. (...)
...
Quanto ao escrúpulo de propriedade, de que falei, deve entender-se que constitui estorvo só quando patentemente prejudica o pronto ou exacto entendimento do discurso. Não quer isto dizer que a propriedade da linguagem, tanto gramatical como vocabular, não seja indispensável em toda a espécie de matéria escrita. E ainda aqui muito depende do público a que se o escritor dirige. O que pode estar bem num artigo destinado a eruditos ou cultivados pode destoar, ainda a esses mesmos, quando se produza um artigo de periódico (jornal), do mesmo modo que o que pode estar certo em prosa pode em verso ser fatalmente destoante.
O certo, nisto como no mais, e que o assunto faz, ou deve fazer, o estilo, como particularmente se observa no diálogo, onde é intuitivo que os interlocutores devem falar como as pessoas que são, que não como o autor falaria, se fosse um ou outro deles. Este caso particular, todos o sabem ou o presumem; o que a muitos esquece é que se deriva de uma aplicação geral.
Ainda que a propriedade, bem entendida, se não deva nunca transgredir, quer empregando palavras com sentidos que naturalmente lhes não competem, quer usando de modos de dizer que não são próprios da língua, ainda assim há que reparar que é legítimo violar as mais elementares regras da gramática - no estilo expositivo ou no artístico se com isso ou a ideia ganha clareza ou firmeza, ou à frase se enriquece o seu conteúdo de sugestão. Se determinado efeito, lógico ou artístico, mais fortemente se obtém do emprego de um substantivo masculino apenso a substantivo feminino, não deve o autor hesitar em fazê-lo. Quis eu uma vez dar, em uma só frase, a ideia - pouco importa se vera ou falsa - de que Deus é simultaneamente o Criador e a Alma do mundo. Não encontrei melhor maneira de o fazer do que tornando transitivo o verbo «ser»; e assim dei à voz de Deus a frase:
Ó universo, eu sou-te!,
em que o transitivo de criação se consubstancia com o intransitivo da identificação.
Outra vez, porém em conversa, querendo dar incisiva, e portanto concentradamente, a noção verbal de que certa senhora tinha um tipo de rapaz, empreguei a frase «aquela rapaz», violando deliberadamente e justissimamente a lei fundamental da concordância.
A prosódia, já alguém o disse, não é mais que função do estilo.
A linguagem fez-se para que nos sirvamos dela, não para que a sirvamos a ela.
in "A Língua Portuguesa", edição Luísa Medeiros, Assírio & Alvim, 1997, Lisboa.