O quimbundo é maneiro? * - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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O quimbundo é maneiro? *

 O número crescente de habitantes nas cidades, a alfabetização mais ampla e o envolvimento do território pela mídia eletrônica colocam a língua portuguesa do Brasil diante de novos dilemas. Não se trata da recente querela sobre a unificação ortográfica do Brasil e de Portugal. Na realidade, o embate entre o português d'aquém e d'além-mar rola há muito tempo no interior do nosso próprio país.

 

   Na sessão inaugural da Academia Brasileira de Letras, em 1897, Machado de Assis afirmou ponderadamente que o objetivo da entidade era conservar, "no meio da federação política, a unidade literária do país". Mas Joaquim Nabuco fez um discurso bastante conservador. Para ele, os portugueses eram os donos da língua. Cabia a nós tomá-los como exemplo para evitar a "rápida deformação" que sucedia na nossa linguagem. Entretanto, pouco antes, o jornalista e magistrado fluminense Antônio Joaquim de Macedo Soares havia acabado de concluir o seu precioso Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa (1888). Logo no prólogo da obra vinha escrito: "já é tempo de os brasileiros escreverem como se fala no Brasil e não como se escreve em Portugal". Macedo Soares incorporava o vocabulário africano e indígena integrado ao português do Brasil. Contudo, avesso aos fricotes nacionalistas, sustentava ainda que nossa linguagem guardava a influência dos clássicos lusitanos, às vezes abandonada pelos próprios portugueses, pelo idioma "afrancesado que se escreve em Portugal". Tal postura imprimiu ao dicionário de Macedo Soares um bom senso que nem sempre está presente nos dicionários atuais.

   Veja-se, por exemplo, certa palavra quimbundo - língua de Angola -, que designa no Brasil uma parte da anatomia humana muito focalizada durante o Carnaval e o verão. Colando o designativo "vulgar" em palavras por vezes consagradas pelos escritores, o Aurélio considera "chula" a expressão "bunda de tanajura", usada em livro de Jorge Amado, como o próprio dicionário indica. Nada pudibundo, Macedo Soares definia, 100 anos antes, "bunda: o assento, as nádegas, palavra chula para os portugueses mas popular no Brasil, e por isso muito aceitável".

   Outro mal-entendido refere-se à ausência, geral, nessas obras todas, da primeira data em que tal dicionário ou tal autor usou o vocábulo no sentido especificado. Desde logo, toda e qualquer gíria jeitosa parece sair direto das novelas da Rede Globo. Mas não é bem assim. Na virada do século XVI, Fernão Mendes Pinto, no seu livro Peregrinação, clássico do porte de Os Lusíadas, preocupava-se com um de seus companheiros, capturado nos confins da Insulíndia por um asiático homossexual, por um "fanchono". Na mesma época, outro clássico, Diogo do Couto, procurava saber, em O Soldado Prático, quem iria "pagar o pato" por causa das falcatruas praticadas nas feitorias da Índia. Por volta de 1660, o padre Antônio Vieira explicava que tal fidalgo lusitano "não tinha peito" para tomar certa decisão. E o padre João Daniel, no seu Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas (1757), dizia que os índios da Amazônia estavam, já naquela época, fartos de "levar na cabeça" dos luso-brasileiros. Há muito tempo povos de vários lugares do mundo quebram a cabeça, neste nosso território, para nos dotar de uma língua comum. E o surfista carioca, que acha o seu body-board "maneiro", pegou a onda de um vocabulário navegado durante séculos pela marinharia lusa e brasileira ("um barco maneiro"), antes de espraiar-se pela Barra da Tijuca.

Sobre o autor

Luiz Felipe de Alencastro nascido em 1946 em Itajaí, Santa Catarina, formou-se em história e ciências políticas na Universidade de Aix-en-Provence (França). Atualmente é professor visitante da cátedra de História do Brasil da Universidade de Paris-Sorbonne.