« (...) O argumento de que a dicotomia claro/escuro é um subproduto da escravatura que ajuda a perpetuar o "racismo estrutural" nos nossos dias, é dar um daqueles saltos quânticos que nenhum intelecto sério consegue suportar. (...)»
Foi apenas um comentário no Twitter, que não teria interesse algum, se: 1) não fosse tão revelador de uma certa forma de pensar; 2) essa forma de pensar não estivesse a conquistar terreno nas escolas e nas universidades; 3) tal conquista não fosse patrocinada por governos e instituições, desejosos de se mostrarem condescendentes e progressistas. O Bloco de Esquerda criou um cartaz com a frase «razões fortes, compromissos claros», e a deputada Joacine Katar Moreira decidiu tuitar: «A dicotomia claro/escuro no discurso político já mudava.» Como quem diz: a palavra claro só é utilizada de forma positiva porque está associada à cor branca; enquanto a palavra escuro é utilizada de forma negativa porque está associada à cor negra.
No Brasil, esta conversa tem anos. Não faltam chamadas de atenção para o tom depreciativo de expressões como humor negro, ovelha negra, denegrir ou, para fãs da Guerra das Estrelas, o «lado negro da Força»; ao mesmo tempo que a palavra clareza é considerada um atributo positivo, como acontece no cartaz do Bloco. É claro (ups!) que querer mudar a linguagem por decreto é mais fácil de dizer do que de fazer, e, por isso, logo apareceu uma compilação de vários tuítes da própria Joacine nos quais a palavra claro era utilizada precisamente da mesma forma que a deputada criticou ao Bloco de Esquerda. O eterno problema dos puritanos é que o simples facto de estar vivo é uma denúncia diária da sua hipocrisia.
Este meu texto serve não só para denunciar o ataque reiterado à linguagem por parte dos novos guerreiros da justiça social, mas sobretudo para demonstrar a ignorância histórica daquela afirmação, e o perigo de reduzir as análises sociais e linguísticas a uma única chave interpretativa – neste caso, o racismo. Um dos problemas da excessiva secularização das sociedades modernas é a transformação de pessoas letradas em ignorantes religiosos. Quem se der ao trabalho de passar os olhos pelo livro do Génesis, ou dedicar cinco minutos a ler a Bíblia – é abrir numa página qualquer –, depressa perceberá que associar as dicotomias claro/escuro, luz/trevas ou dia/noite à concentração de melanina na pele é tão disparatado que se torna quase cómico.
Em primeiro lugar, essas dicotomias derivam da física e da biologia: o Homo sapiens aprecia mais o dia do que a noite porque sem luz não vê patavina, e pode ser facilmente atacado por inimigos ou deglutido por predadores – gostar de clareza não é gostar de pele branca; é gostar de ver bem. Em segundo lugar, este facto elementar foi depois codificado nas narrativas mitológicas que ajudaram a estruturar a vida humana, geração após geração. Basta ler as primeiras palavras do primeiro capítulo do primeiro livro da Bíblia: «Deus disse: "Faça-se luz." E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. Deus chamou dia à luz, e às trevas noite.»
É claro (ups!) que se pode argumentar que a Bíblia foi o diário de bordo da colonização, e que o maniqueísmo luz/trevas ajudou a transformar o corpo negro num ser impuro e mais facilmente dominado. Mas, ainda que consideremos tal tese, pular daí para o argumento de que a dicotomia claro/escuro é um subproduto da escravatura que ajuda a perpetuar o «racismo estrutural» nos nossos dias, é dar um daqueles saltos quânticos que nenhum intelecto sério consegue suportar. Se Joacine fosse um peixe, acharia que a água tinha sido inventada para ela poder nadar. Lamento dar-lhe a má notícia: não foi.
Crónica incluída na edição de 7 de dezembro de 2021 do jornal Público, escrita segundo a norma ortográfica de 1945.