«(...) Há um pequeno problema com isto tudo, com esta nova terminologia, com a selva de classificações e as respectivas gavetas em que cada um é metido e a obsessão pelas identidades – é que não é nem inclusiva, nem democrática. (...)»
A polémica sobre aquilo que é entendido como linguagem “inclusiva” já dura há vários anos. Toda uma série de neologismos está a crescer a cada dia, associada a uma suposta autoridade moral no seu uso. Não os usar exclui, logo coloca quem não os usa do lado do mal. A ela se acrescenta uma censura crescente de termos cuja utilização num texto ou numa notícia de jornal, suscita de imediato uma fúria censória. É caso de palavras como preto, cigano, paneleiro, bicha, fufa, por aí adiante. É interessante ver que branquela não é atingido pelo opróbrio. É verdade que muito destes termos são insultos homofóbicos ou racistas, mas o expurgo da linguagem comum de termos ofensivos empobrece-a, como se fosse possível ter uma linguagem sanitariamente pura, coisa que é mais do domínio orwelliano, ou seja das ditaduras do que das democracias.
A polémica da linguagem inclusiva que já chegou à publicidade e à rua, com a campanha da Fox nas paragens de autocarros, é um sinal irónico do valor comercial destas questões. Há uma razão para esse valor comercial, é que estão na moda e a moda tem muita força. Essa campanha, do «imperialismo cultural americano» como diria o PCP, pretende ensinar-nos sobre o significado do novo vocabulário que quer introduzir na linguagem corrente um vasto conjunto de classificações “inclusivas”. Porquê “inclusivas”? Porque elas permitem nomear a variedade de identidades e questões associadas com elas que existem, ou supostamente existem, porque nalguns casos tenho dúvidas.
Os termos que a Fox nos pretende explicar incluem «não binária»; queer; trans; «LGBTI-Fobia»; gay; «expressão de género»; cis ou cisgénero; aliada; bissexual; pansexual; lésbica; «família arco-íris»; misgendering; «nome social»; poliamor e travesti. Ou seja, desdobram o mistério do LGBTTTQQIAA+, cuja aceitação acrítica e repetição mostra como se aceita tudo que se coloca no prato comunicacional seja por inércia seja por medo de se ser «politicamente incorrecto».
Este surto de identidades vai ao ponto de também haver «trans espécies», humanos que acham que são cães ou veados ou dragões por exemplo. E não um cão qualquer, um dálmata por exemplo. Não é difícil ironizar com estas escolhas, e se eu usasse neste artigo uma fotografia de um destes trans espécies a coisa seria jocosa, mas o assunto é mais sério, e tem a ver com a questão de perceber como é que se deu esta doença obsessiva da identidade e que efeitos tem na sociedade.
Com o risco de dizer asneiras, qual é a minha “identidade” neste emaranhado de classificações? Sou cisgénero, neste caso homem. A definição é bizarra: «Cisgéneros são pessoas que se identificam com o sexo biológico que lhes foi atribuído ao nascer. Elas também se identificam com o padrão normativo de atitudes e comportamentos que a sociedade espera dos géneros masculino ou feminino.» A coisa é complicada porque não sei muito bem quem é que me “atribuiu” o sexo biológico, a não ser a biologia ou Nosso Senhor, nem quem é que define «o padrão normativo de atitudes e comportamentos que a sociedade espera dos géneros masculino ou feminino». Ou seja, a escolha do sexo é “social” e não natural e eu posso ter o sexo que quiser, ou a combinação de sexos que escolher, ou achar que sou um não-humano.
Recapitulemos: sou caucasiano branco, do sexo masculino, cisgénero, binário, ou seja, tudo o que de pior se pode ser nestes dias, até porque é suposto que não me possa pronunciar sobre raça, porque sou da raça errada, nem do sexo, porque sou um servo de um «padrão normativo» que me foi imposto por uma sociedade que só comporta uma «identidade de género». Todas estas afirmações de identidade, que nunca na vida me passou pela cabeça poder fazer, diminuem-me social e culturalmente. Lendo o que se escreve nestes dias, inclusive no Público, não posso dar aulas sobre a história do colonialismo, e ao escrever estas coisas sobre as «identidades de género» fico na categoria de homofóbico e racista. Se eu quiser fazer uma associação de artistas «brancos», sou supremacista branco, mas o anúncio de uma União Negra das Artes não suscitou problema nenhum. Esperem uns dias e verão as acusações que vão cair em cima do branco binário.
Há um pequeno problema com isto tudo, com esta nova terminologia, com a selva de classificações e as respectivas gavetas em que cada um é metido e a obsessão pelas identidades – é que não é nem inclusiva, nem democrática. A sociedade democrática não é um produto natural, mas cultural. É uma escolha de responsabilidade humana, que tem por base uma igualdade potencial entre todos, todas e todos. Sabemos que essa igualdade não existe, a começar porque há pobres e ricos, há quem tenha conhecimentos e quem seja ignorante, quem sabe falar e quem não sabe, há múltiplos factores de exclusão na sociedade que torna uns mais “cidadãos” do que outros e alguns desses factores são identitários, ou porque são mulheres num mundo de homens, ou são negros numa terra de brancos, ou são vítimas de preconceitos porque o modo como desejam viver e amar é diferente, mas isso é uma coisa muito diferente de querer moldar o mundo a uma obsessão identitária, que não “inclui”, mas exclui, que censura a liberdade e estabelece uma hierarquia moral entre pessoas cisgéneras – mas que absoluta idiotia – e as que são mais livres, mais dignas, mais felizes, mais capazes e que reservam para si o alto pedestal da moral, onde estão os queer, os “trans”, os «dois espíritos», os travestis, etc., etc. E o dilema também tem nome: ou se é “aliado”, ou se é anti-LGBTTTQQIAA+, seja lá o que for que isso significa.
Cf. Mais categorias não nos excluem, aumentam-nos + Para muites, essa foi a maior surpresa Linguagem inclusiva não é «capricho». É «igualdade e respeito» + Liberdade de expressão para banalizar ou não falar do racismo? + O que faz uma União Negra das Artes? + O bullying dos opinion-makers + A fraude intelectual do pensamento pós-moderno + Aluga-se retrato (mulher trans negra) para uma boa discussão
Artigo da autoria do historiador e político português José Pacheco Pereira, transcrito, com a devida vénia, do jornal Público do dia 9 de julho de 2022. Escrito segundo a norma ortográfica de 1945.