Da literatura à política linguística - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Da literatura à política linguística
Da literatura à política linguística
Divagações de uma linguista que gosta de ler

«(...) A atribulada história da Estónia e da sua língua explicam a preocupação das autoridades em produzir legislação que visa o desiderato constitucional de preservar a nação, a língua e a cultura estonianas por muito tempo. (...)»

 

Acabei há dias de reler O Louco do Czar, de Jaan Kross, romance publicado em 1993, traduzido a partir da versão francesa. Li-o na altura, mas ficou junto dos "a reler", porque a falta de tempo e de conhecimentos históricos e linguísticos me impediu de compreender devidamente a ação. Atualmente, dou comigo a reler, como se os lesse pela primeira vez, muitos livros que deixei em pousio e que me levam a procurar entender melhor o tempo e espaço que apresentam e o mundo atual.

Jaan Kross (1920-2007) é o mais conhecido, premiado e traduzido autor literário da Estónia. Este romance, de 1978, é a sua obra mais conhecida internacionalmente. A ação decorre na Estónia da primeira metade do século XIX, quando era parte do Império Russo. O protagonista, Timo, o louco do Czar, foi Timotheus Eberhard von Bock (1787-1836) na vida real, um militar do exército russo e do corpo de hussardos (1805-1816), próximo do czar Alexandre I. A narrativa centra-se na luta política travada por Timo contra a autocracia e a servidão russas e no projeto de constituição que efetivamente enviou a Alexandre I, em 1818. Ao longo da leitura, vamos conhecendo episódios determinantes do dealbar do sentimento identitário do povo estoniano e do respeito pela sua língua e cultura. Apesar de ficção, a obra apresenta um posfácio, no qual se esclarece quais personagens e eventos foram reais, e um post-scriptum. Mais não posso revelar sem estragar a surpresa de quem a vier a ler.

A Estónia é um dos países bálticos, com a Letónia e a Lituânia, e foi independente pela primeira vez em 1918, após a Revolução Russa de 1917; em 1940, foi ocupada pela URSS e tornou-se a 16.ª República Socialista e Soviética até 1991; de 1941 a 1944 esteve ocupada pela Alemanha nazi. Em 1991, a Estónia declara a reconquista da sua independência, tornando-se membro da UE e da OTAN em 2004. O estónio ou estoniano é a língua oficial, mas nem sempre foi assim. Segundo os censos de 1989, 34,6% dos estonianos falavam russo (praticamente todos os educados na era soviética), mas só 15% dos falantes de russo falavam estoniano. A este bilinguismo de sentido único estoniano-russo, da época soviética, seguiu-se, em 1989, uma breve igualização do estatuto das duas línguas. Com 1,3 milhões de habitantes, atualmente, o estónio (código ISO 639-3: est) é falado por c. 1,1 milhões de pessoas; a segunda língua mais falada é o russo, mas em 1995 tornou-se legalmente língua minoritária.

A atribulada história da Estónia e da sua língua explicam a preocupação das autoridades em produzir legislação que visa o desiderato constitucional de preservar a nação, a língua e a cultura estonianas por muito tempo. Já neste século, foram publicados diversos planos estratégicos para o desenvolvimento da língua e sua relação com línguas estrangeiras; a Estratégia para a língua estoniana – 2021-2035 determina objetivos estratégicos em três áreas essenciais: 1) consolidação da estabilidade e prestígio do estoniano; 2) incremento da investigação e criação de uma infraestrutura para a língua; 3) ensino-aprendizagem da língua.

O romance de Jaan Kross motivou esta breve incursão na política linguística da Estónia, que muitos acharão desinteressante, dado que o português, do alto da sua antiguidade e pujança demográfica, não carece de políticas linguísticas modernas. Porém, ainda que a "superioridade" do português fosse real, bem que os nossos decisores políticos e diplomatas ganhariam em conhecer o que é e como se faz política linguística no séc. XXI.

Fonte

Crónica da linguista e professora universitária portuguesa Margarita Correia, publicada no jornal Diário de Notícias, de 5 de julho de 2022.

Sobre a autora

Margarita Correia, professora  auxiliar da Faculdade de Letras de Lisboa e investigadora do ILTEC-CELGAEntre outras obras, publicou Os Dicionários Portugueses (Lisboa, Caminho, 2009) e, em coautoria, Inovação Lexical em Português (Lisboa, Colibri, 2005) e Neologia do Português (São Paulo, 2010). Mais informação aqui. Presidente do Conselho Científico do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) desde 10 de maio de 2018.