« (...) Continua a verificar-se a quase regra de a maioria das palavras ter uma carga aparentemente negativa e, ao invés, nem uma única transportar uma qualquer boa nova. Muito português, sem dúvida. (...)»
Pelo décimo ano consecutivo, a Porto Editora e a Infopédia promovem a votação da palavra do ano. Desta vez, estão em disputa dez termos: assédio, enfermeiro, especulação, extremismo, paiol, populismo, privacidade, professor, sexismo, toupeira.
Como tem sido recorrente, as palavras candidatas estão algo enviesadas por força de uma tendência memorial que, em linguagem de stockagem, se poderia apelidar de FIFO (first in, first out), ou seja, as palavras seleccionadas tendem a acumular-se mais nos últimos meses do ano e as dos primeiros meses não resistem tanto à erosão do calendário. O caso mais evidente é o da palavra enfermeiro, que agora está bem fresquinha. E, por uma unha, colete não está entre as eleitas, em tons amarelos evidentemente.
Desta vez, não há estrangeirismos ou mesmo evidentes neologismos. Nem sequer verbos ou adjectivos. E nenhuma das dez palavras tem ortografia diferente, na versão acordista ou não acordista. Uma selecção contida, dir-se-á. A propósito de palavras vencedoras e resultantes de moda efémera e estrangeirada, logo descartadas do uso e da memória, o caso mais estranho aconteceu em 2010 com a onomatopaica sul-africana vuvuzela. Assim como surgiu, logo se eclipsou.
Nota-se a predominância dos vocábulos de origem ou natureza mais política ou laboral. Felizmente a palavra desemprego já há anos que não aparece, ela que é a única repetente três vezes em plena crise (2010,11 e 12). Desde as siglas FMI e TSU aos acrónimos PEC e SCUT, volta a não haver estas palavras comprimidas. Paiol até pode ser entendido quase como um arcaísmo, ressuscitado por um emaranhado político-militar-laboral sem fim à vista. À palavra enfermeiro talvez lhe falte uma espécie de aposto ou continuado: greve. Sempre pensei que a palavra culpa tivesse sido escolhida para a votação final, mas compreendo as razões da ausência. É que de tão dita e maldita, não foi por cá encontrada e definhou solteira.
Populismo está na lista sem surpresa, como surpresa não é muita gente desconhecer o seu significado preciso. Especulação, este ano, porquê se a há em doses avantajadas todos os anos? Há quatro palavras que, em linguagem matemática, se poderiam transformar em pares binários, dada a sua interligação por simpatia ou antagonismo: assédio e sexismo, privacidade e toupeira.
Passam-se os anos a falar de futebol. Contudo, a futebolândia sempre foi pouco assídua nestas escolhas vocabulares. Nem mesmo VAR conseguiu esta façanha! Este ano, ainda que sob a forma capciosa de um mamífero roedor – a toupeira –, podemos entrever o esférico ou a redondinha numa quadratura do círculo. De todas as palavras há duas que se dão bem com meias-palavras: assédio e toupeira. A primeira, mais à superfície; a segunda, mais escondida.
Continua a verificar-se a quase regra de a maioria das palavras ter uma carga aparentemente negativa e, ao invés, nem uma única transportar uma qualquer boa nova. Muito português, sem dúvida. A palavra turismo não surge entre as dez escolhidas, tal como alojamento (local ou nem por isso) ou gruta (a pensar nas crianças tailandesas) e, apesar da excitação dos últimos tempos, nem touro, tourada ou corno alcançaram a designação.
Desta vez, também ficaram de fora palavras relacionadas com a saúde (ou melhor, da falta dela), o que é bom sinal, bem como da tecnologia para a qual nem a Web Summit valeu. A religião que, no ano passado, esteve representada com o vocábulo peregrino, voltou à estaca zero. Já a botânica está sempre ausente, a não ser, em 2017, com a palavra floresta (ainda que por causa dos incêndios) e apesar de este ano um sobreiro ter sido a árvore europeia do ano, não esquecendo o carvalho para os lados de Alvalade.
A minha votação de entre as dez palavras vai para populismo, ainda que o meu prognóstico para a vencedora esteja numa das duas profissões seleccionadas – enfermeiro ou professor –, quem sabe se com o assédio, por via da votação, da toupeira.
Já no Reino Unido (promovido pela Oxford Dictionaries), o termo proclamado vencedor foi toxic. Trata-se de uma palavra que é não apenas usada no seu sentido mais estrito e literal, como com alargados sentidos metafóricos.
No Brasil, um pouco à semelhança da metodologia britânica, em 2017 a palavra vencedora foi, evidentemente, corrupção. Não sei se pode haver reincidência vitoriosa, pois voltaria a estar nas palavras (infelizmente) favoritas.
Em suma, a última palavra – que será a primeira – pertence aos votantes online! E quando será que palavra virá a ser o termo escolhido? Pela minha parte, ficaria muito agradado ou, quem sabe, sem palavras! Palavra de honra.
IPSIS VERBIS
Seleccionei alguns erros ou modismos com presença muito assídua em 2018:
PLEONASMO: Há anos atrás (ou será à frente?) e alojamento local (ou será sem local?)
OXÍMORO: Grande beijinho (mas não pequena beijoca)
SOLECISMO: Vão haver muitas novidades...
PRONÚNCIA: rubrica dita erradamente como se fosse «rúbrica» e acordos como se fossem «acórdos»
CONJUGAÇÃO: interviu sem ter intervido
POUPANÇA SILÁBICA: competi(ti)vidade, precari(e)dade e empreen(de)dorismo (muito habituais em São Bento)
MODISMO: No fim do dia, uma tradução literal e afectada de «at the end of the day»
MODISMOS FUTEBOLÍSTICOS: troca por troca (ainda que à condição)
MODISMOS VERBAIS: Empoderar, elencar e impactar
CONFUSÃO: o homem foi evacuado (coitado! Espero que não tenha sido troca por troca...)
PARADOXO: Correr atrás do prejuízo (ou será à frente?)
EUFEMISMO: politicamente correcto (eufemismo sobre o próprio eufemismo)
À ESPERA DE NEOLOGISMOS: Amarar no rio ou aterrar em Marte
CACOFONIA: um ovários
CONFUSÃO ACORDISTA: ótico (dos olhos) e ótico (dos ouvidos)
AMBIGUIDADE: ambiguação (na Wikipedia)
O MAIS UNIVERSAL DOS ERROS: Tenho que acabar este texto (em vez de tenho de acabar este texto porque tenho muito mais que fazer)
Artigo transcrito do jornal "Público" do dia 21/12/2019, escrito na norma anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.