«Seria estéril continuar a comparar as lexicografias de língua inglesa e de língua portuguesa.»
Um comentário frequente é o de que o inglês é uma língua mais apta para ser língua global, porque tem muitas palavras e permite facilmente a incorporação de neologismos, i.e. palavras novas. Existe alguma verdade nestas ideias, mas é necessário entender que o que torna o inglês tão capaz de denominar muitos e também novos conceitos não é qualquer característica intrínseca que a torne “melhor”, mas sim as condições históricas, sociais, económicas, culturais que rodearam o seu desenvolvimento. Tentarei apontar algumas.
É verdade que hoje em dia a maioria dos neologismos da língua portuguesa é proveniente do inglês. Tal deve-se à sua hipercentralidade no sistema global das línguas, que, por sua vez, decorre da posição que este veio a atingir sobretudo a partir do final da Segunda Guerra Mundial, como bem explica David Crystal, na sua obra English as a Global Language (1.ª ed. 1997). É também provável que o inglês seja a língua com um léxico mais extenso, com mais palavras. Tal facto decorre também da sua hipercentralidade, uma vez que, quanto maior for o número de âmbitos de uso de uma língua, maiores são as necessidades lexicais dos seus falantes e, portanto, mais palavras ela tem. Línguas com âmbitos de uso restritos (e.g. línguas de uso familiar, ágrafas ou com pouca tradição escrita) têm menos palavras do que as “grandes línguas”, que são usadas em todos os tipos de contextos (oral e familiar, mas também escrito, formal, educativo, jurídico, científico, cultural, literário, noticioso, etc.). Merece realce que o léxico da língua inglesa esteja longe de ser “puro”: Crystal refere que o inglês terá importado palavras de mais de 350 línguas diferentes e que mais de três quartos das suas palavras são de origem românica. Tendo em conta a natural impossibilidade de os dicionários darem conta de «todas as palavras de uma língua», é natural que os números mencionados por Crystal apenas pequem por defeito.
Não é possível dizer de quantas línguas diferentes importou o português palavras, nem, e.g., qual a proporção de palavras provenientes do latim, ou do grego, ou do árabe, ou do inglês. A diferença, a este nível, entre o inglês e o português deriva da qualidade da lexicografia de uma e outra línguas.
No século XVII, surgem os primeiros grandes dicionários monolingues na Europa – em Portugal, a lexicografia monolingue tem início no século XVIII. Neste século, a maioria dos países do norte da Europa conhece uma expansão generalizada da literacia entre a população e o material impresso é acessível. Portugal é ainda hoje o país com maior índice de analfabetismo da Europa; no século XVIII, António de Morais Silva, cujo dicionário é editado em 1789, exila-se em Londres entre 1779 e 1788, perseguido pela Inquisição, formalmente extinta apenas em 1821.
O inglês tem o Oxford English Dictionary (OED), compilado entre 1860 e 1928, que é ainda hoje o maior dicionário histórico da língua inglesa. A digitalização do OED iniciou-se em 1983, a 2.ª edição impressa é de 1989. Desde 2000 encontra-se totalmente online e a 3.ª edição está prevista para 2037. O português não tem um dicionário histórico. Nos anos 90 começaram a ser digitalizados os dicionários e a surgir as primeiras edições em CD-Rom em Portugal. Os dois dicionários online mais acessíveis (Infopédia e Priberam) são portugueses, mas não se comparam nem em extensão nem em exaustividade aos dicionários online que encontramos para o inglês. Seria estéril continuar a comparar as lexicografias de língua inglesa e de língua portuguesa.
A diferença entre o inglês e o português, a nível lexical, nada tem a ver, portanto, com características intrínsecas das línguas. Estas são aquilo que as sociedades que as falam fizerem com elas e não há dúvida de que ainda há muito a fazer para dotar a língua portuguesa dos recursos linguísticos que merece e a que tem direito.
Artigo publicado em 1 de setembro no jornal Diário de Notícias.